1. Justa Causa
Os fatos ocorridos dentro de uma relação de trabalho, sejam eles bons ou ruins, irradiam suas consequências também para outras esferas da vida do trabalhador, em especial a familiar. É improvável, por exemplo, que um empregado vítima de assédio moral consiga, ao sair do ambiente de trabalho, desligar-se psicologicamente de tal maneira do trabalho a ponto de não deixar que seu cônjuge, filhos e/ou familiares percebam que há algo errado, pois, para a infelicidade de alguns maus empregadores, trata-se de um ser humano e não de uma máquina. Seguindo essa mesma lógica, um dos atos da relação de emprego que também implica em maléficos efeitos na vida pessoal do trabalhador é a aplicação da justa causa pelo empregador, ao rescindir um contrato de trabalho.
Evidente que o empregado demitido sob essa pecha se sente envergonhado e constrangido, sendo afetado negativamente em sua imagem perante aqueles que fazem parte de seu círculo de relacionamento pessoal e sofrendo prejudicial abalo em sua carreira profissional, dificultando de maneira indubitável ser contratado por empregadores que eventualmente saibam da justa causa aplicada pelo antigo patrão. É por conta desses e doutros nefastos efeitos na vida do trabalhador que o empregador deve ter especial cautela e cuidados ao optar por essa forma de desfazimento do vínculo de emprego.
A legislação brasileira adota o critério taxativo no sentido de que todas as hipóteses de infrações trabalhistas estão previstas em lei. Ou seja, não é possível o empregador inovar e considerar causa capaz de justificar uma justa causa um fato que não se enquadre nas possibilidades descritas na lei.
É o contraponto do critério genérico. Isso não quer dizer, entretanto, que há uma rigidez nos tipos legais de infrações trabalhistas, pois, como veremos mais adiante, o artigo 482 da CLT prevê conceitos de grande plasticidade (flexibilidade), de modo que inúmeras práticas podem ser abrangidas.
Entende-se que há justa causa quando um empregado comete, culposa ou dolosamente, um ato relevante a ponto de tornar imediatamente impossível a continuidade do contrato de trabalho. Ou seja, não é qualquer ato que desagrade o empregador que possibilita rescindir o contrato por culpa do empregado. O ato tem que ser relevante a ponto de quebrar a fidúcia necessária a todo contrato de trabalho.
Em que pese se tratar de um assunto tão importante para a vida laboral do trabalhador, infelizmente a legislação não prevê qualquer exigência de procedimentos a serem adotados nos casos dos empregados não estáveis. A meu ver, em respeito aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da preservação do contrato de trabalho e da dignidade da pessoa humana, deveria exigir a obrigatoriedade de um procedimento, mesmo que simples, como a notificação por escrito do trabalhador, com a possibilidade de o mesmo provar sua não-culpabilidade ou qualquer razão que justifique a conduta culposa que lhe foi atribuída. Existe parte da doutrina trabalhista que defende esse ponto de vista.
Apesar de não haver um rito processual-extrajudicial a ser seguido pelo empregador, isso não significa, contudo, que não haja requisitos a serem observados e que, se descumpridos, possibilitam o Poder Judiciário transformar a rescisão por justa causa para a modalidade sem justa causa. Os estudiosos do direito laboral costumam citar a famosa lição de Maurício Godinho onde apresenta três requisitos: objetivos; subjetivos e circunstanciais[1].
No requisito objetivo analisa-se: a tipicidade da conduta, ou seja, se o ato praticado pelo trabalhador enquadra-se em alguma das hipóteses previstas em lei para a aplicação da justa causa; se o ato tem alguma relação com o trabalho ou possa causar algum prejuízo ao cumprimento dos deveres laborais; e a gravidade da falta.
O requisito subjetivo preocupa-se com: a autoria, isto é, se foi o trabalhador quem cometeu a falta; e se houve dolo do empregado, ou seja, intenção de praticar a falta, ou culpa, essa decorrente de imperícia, negligência ou imprudência.
O requisito circunstancial verifica, entre outros: o nexo entre a conduta do trabalhador e a aplicação da pena; a dosagem da penalização escolhida; o tempo transcorrido entre a falta e a adoção da justa causa. O professor Maurício Godinho explica sobre esse requisito:
São inúmeros tais requisitos, a saber: nexo causal entre a falta e a penalidade; adequação entre a falta e a pena aplicada; proporcionalidade entre elas; imediacidade da punição; ausência de perdão tácito; singularidade punição (non bis in idem); inalteração da punição; ausência de discriminação; caráter pedagógico do exercício do poder disciplinar, com a correspondente gradação de penalidades.
É visível que, apesar de inexistir um rito procedimental a ser seguido pelo empregador, isso não significa, outrossim, que não há critérios e cuidados a serem observados e, se descuidados, poderão ensejar a reversão pelo Poder Judiciário Laboral.
1.1. Hipóteses de Justa Causa
As situações em que é possível a aplicação da pena da justa causa estão descritas principalmente no artigo 482 da CLT, mas em outras legislações também há algumas previsões, porém sem interesse para o objetivo desta obra.
1.1.1. ato de improbidade (art. 482, alínea “a”): relaciona-se à atitude desonesta, podendo, ou não, ter causado prejuízo ao patrimônio do empregador. Por desonesto entende-se aquilo que que é contrário à lei, à moral ou aos bons costumes. Está relacionada à quebra de confiança no empregado, tornando impossível a manutenção da relação de emprego.
1.1.2. incontinência de conduta ou mau procedimento (art. 482, alínea “b”): a incontinência de conduta está relacionada a atos que violem a moral e os bons costumes na esfera sexual. Já o mau procedimento refere-se às demais esferas (uso de entorpecentes, por exemplo).
1.1.3. negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço (art. 482, alínea “c”): refere-se à prática de concorrência desleal como empregador ou ao comércio praticado dentro do ambiente de trabalho, quando exista proibição do empregador contra isso.
1.1.4. condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena (art. 482, alínea “d”): independente se a causa da condenação está relacionada ao trabalho ou não, se for definitiva a pena de privação da liberdade e sendo impossível a suspensão da execução da pena, poderá o empregador rescindir o contrato por culpa do empregado, ou seja, com justa causa.
1.1.5. desídia no desempenho das respectivas funções(art. 482, alínea “e”): desidioso poderá ser considerado o trabalhador que reiteradamente age de forma preguiçosa, negligente, relaxada, com produtividade abaixo da normalidade.
1.1.6. embriaguez habitual ou em serviço (art. 482, alínea “f”): são duas hipóteses distintas. A embriaguez fora do serviço deve ser habitual e deve repercutir prejudicialmente no trabalho. Já a embriaguez em serviço pode ter sido apenas uma única vez, mas com gravidade suficiente para quebrar a confiança e inviabilizar o contrato de trabalho. É o caso, por exemplo, de um vigilante armado embriagar-se no local de trabalho e colocar em risco a vida de outras pessoas.
1.1.7. violação de segredo de empresa (art. 482, alínea “g”): essa atitude abala diretamente a necessária fidúcia que deve haver no contrato de trabalho e tem potencial para causar imensurável prejuízo à empresa.
1.1.8. ato de indisciplina ou de insubordinação (art. 482, alínea “h”): a indisciplina é a deliberada infração a norma interna e genérica da empresa. Já a insubordinação é o intencional descumprimento de uma ordem pessoal emitida por um superior.
1.1.9. abandono de emprego (art. 482, alínea “i”): é a falta repetida durante determinado período de tempo com a intenção de terminar o contrato de trabalho.
1.1.10. ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; (art. 482, alínea “j”): lesões físicas ou morais devem ser perpetradas dentro do ambiente de trabalho.
1.1.11. ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem (art. 482, alínea “k”): mesmo que o dano tenha sido causado fora do local de trabalho.
1.1.12. prática constante de jogos de azar (art. 482, alínea “l”): o jogo deve ser ilícito, ser habitual e prejudicar o trabalhou ou o ambiente de trabalho.
1.2. Análise de algumas decisões judiciais
1.2.1. Acusação de Improbidade
(…) INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DISPENSA POR JUSTA CAUSA. IMPROBIDADE. REVERSÃO EM JUÍZO. A CLT prevê a possibilidade de dispensa do trabalhador por justa causa (art. 482 e alíneas, por exemplo). O simples enquadramento da conduta obreira motivadora da dispensa nos tipos jurídicos do art. 482 da CLT não enseja, regra geral, reparação por dano moral à imagem, conforme jurisprudência amplamente dominante. Tratando-se, porém, de enquadramento em ilícito trabalhista e também ilícito criminal – tal como ocorre com o ato de improbidade referido pelo art. 482, “a”, da Consolidação -, a jurisprudência extrai consequências jurídicas distintas. Pode, sim, ensejar reparação por dano moral ou à imagem (art. 5º, V e X, CF/88) a acusação, pelo empregador ao empregado, da prática de ato ilícito, especialmente o capitulado no art. 482, “a”, da CLT.
Notadamente se feita esta acusação de modo despropositado ou leviano, sem substrato probatório convincente, ou se feita de maneira descuidada, com alarde e publicidade, ainda que informais. Mesmo que não transpareçam essas características circunstanciais descritas (leviandade, descuido, publicidade), a mera acusação de ato ilícito, por afrontar gravemente a honra e a imagem da pessoa humana, pode ensejar danos morais, caso não comprovada. Claro que, tratando-se de operação consistente na avaliação minuciosa e sopesada do fato e de seu subsequente enquadramento em norma jurídica, a aferição das peculiaridades do caso concreto pode conduzir a resultados diferenciados pelo Julgador. Na hipótese dos autos, pelos termos do v. acórdão recorrido, vê-se que o Reclamado dispensou a Reclamante por justa causa em razão de ato de improbidade, sob a alegação de que ficou demonstrada a prática, pela Obreira, de falta gravíssima (nos meses de novembro e dezembro/2008), consistente em apropriação de valores depositados em conta de clientes do Banco. Todavia, reconheceu-se, neste feito, a inexistência de justa causa, dada a ausência de substrato fático-probatório para tanto. Nesse contexto, a acusação de ato ilícito pelo Reclamado sem qualquer comprovação acabou por afrontar gravemente a honra e a imagem da Reclamante, ao ponto de, inclusive, deixá-la depressiva, o que enseja a indenização por danos morais. Recurso de Revista conhecido e provido, no particular.
Quando a instituição bancária acredita que seu trabalhador apropriou-se de recursos de seus clientes, a fundamentação apresentada no momento do desligamento é a do “ato de improbidade” (alínea “a”), entretanto nem sempre a empregadora age de maneira justa e correta, pois às vezes aplica a pena sem ter a certeza da efetiva autoria dos desvios. Ou seja, como vimos, há um descuido na configuração do requisito subjetivo para a aplicação da pena.
Em março de 2015 o TST julgou um caso (ARR 531-16.2010.5.03.0103) em que banco Itaú Unibanco demitiu por justa causa uma trabalhadora por ato de improbidade, acusando-a de ter se apropriado, por três vezes sucessivas, de valores depositados em contas correntes de clientes. A trabalhadora ingressou com ação judicial pedindo a reversão do justa causa e a condenação do banco a compensá-la financeiramente pelos danos morais sofridos, vez que desenvolveu depressão após a demissão.
Em primeira instância o juiz reverteu a demissão para a modalidade sem justa causa, mas sem direito à reparação pelos danos morais. Em segunda instância, o tribunal regional manteve a sentença.
Então, o TST decidiu que apesar de a jurisprudência daquela corte superior ser no sentido de que a reversão da justa causa não significa, automaticamente, direito a danos morais, no caso analisado “… a acusação de ato ilícito criminal sem qualquer comprovação acabou por afrontar gravemente a honra e a imagem da trabalhadora, ao ponto de, inclusive, deixa-la depressiva, o que enseja a indenização por danos morais…”, nas palavras do relator, ministro Maurício Godinho Delgado, concluindo o tribunal por condenar o banco a pagar a quantia de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) à obreira.
1.2.2. Concorrência desleal
Em setembro de 2014 o TST (Proc. N. TST-AIRR-230900-46.2008.5.02.0090) confirmou decisão do TRT de São Paulo que reverteu a justa causa aplicada pelo Unibanco Itaú a um bancário que emprestava dinheiro a juros para os colegas de trabalho, o que configuraria concorrência desleal, prevista na alínea “c” do artigo 482 da CLT.
O tribunal regional entendeu que ficou comprovado que dentro do estabelecimento bancário havia outros trabalhadores que também realizavam comércio de produtos, que o controle disciplinar era “frouxo” e que era exagero o banco considerar concorrência desleal, eis parte do acórdão:
Aliás, como bem salientou o juízo de primeiro grau, a dispensa motivada “não se deu em virtude da comercialização de produtos diversos da ré” (fls. 310), mas sim por ter sido advertido anteriormente e por se tratar de prática desleal ao reclamado.
No entanto, a conclusão pela existência de concorrência desleal ao empregador é, data máxima venia, exagerada. Não se pode comparar uma pessoa física a uma instituição bancária em termos de empréstimo, além do que o banco não está estabelecido para fazer empréstimos a seus próprios funcionários, ainda que isso seja possível, mas sim ao público em geral. É bem verdade que o comportamento do reclamante não era dos mais elogiáveis, mas não justifica a justa causa.
O que se percebe desse caso é que apesar de a conduta em si mesma considerada até poderia enquadrar no tipo legal, entretanto na análise do requisito circunstância concluiu-se que a atitude permissiva e omissiva da reclamada gerou no espírito do trabalhador a justa sensação de que aquela atitude seria aceitável.
1.2.3. Desproporcionalidade da punição
Em outra decisão, o TST confirmou decisão do TRT da 4a Região que, por sua vez, também mantinha a sentença de primeira instância, que desconstituía a justa causa aplicada pelo Banco do Brasil a um trabalhador que utilizou o terminal de autoatendimento para aumentar o limite do cartão de crédito e transferi-lo para a conta-corrente (cheque especial). Vejamos a ementa:
RECURSO DE REVISTA DO RECLAMADO. BANCO DO BRASIL. REVERSÃO DA JUSTA CAUSA. 1 – O TRT afastou a justa causa para a dispensa porque o procedimento do reclamante, gerente bancário que passava por dificuldades financeiras, de aumentar o limite do seu cartão de crédito utilizando senha funcional, ocorreu por meio de Terminal de Auto Atendimento, operação que podia ser feita por qualquer correntista devido à permissão do sistema bancário. A Corte regional destacou ainda que o reclamante não se apropriou indevidamente de dinheiro do banco, mas, diferentemente, contratou crédito, o que atende aos interesses da instituição financeira, a qual “obviamente, lucra com o endividamento de correntistas que, a juros exorbitantes, se submetem a se socorrer de dinheiro do Banco”. 2 – A demissão por justa causa, punição máxima, somente se justifica quando a gravidade da conduta do trabalhador ou a inequívoca quebra de confiança sejam de tal ordem que inviabilizem a gradação de sanções. Não foi o que ocorreu no caso dos autos. 3 – O ato praticado pelo reclamante, ainda que reprovável, não ensejou prova de seu enriquecimento ilícito, nem caracterizou ato de improbidade, mau procedimento ou indisciplina, de modo que comportaria penalidade mais branda. As premissas fáticas registradas no acórdão recorrido demonstram, de maneira inequívoca, que não houve proporcionalidade entre a conduta do reclamante e a demissão por justa causa. 4 – Assim, não há como se reconhecer violação dos dispositivos apontados pelo recorrente. 5 – Recurso de revista de que não se conhece. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. O TRT contrariou as Súmulas nos 219 e 329 do TST, ao deferir os honorários advocatícios, sem que o reclamante estivesse assistido por seu sindicato de classe. Recurso de revista a que se dá provimento. (Proc. n. TST-RR 144-21.2010.5.04.0831)
Nesse caso analisado pela Corte Laboral Superior a gradação da pena foi inadequada por parte do banco. A instituição alegou improbidade, mau procedimento e indisciplina, porém foi extremamente severa ao punir o trabalhador por uma prática que poderia ter sido realizada por qualquer correntista. O juiz singular disse que “…a prática do reclamante, conquanto eticamente questionável, não enseja punição capital…”. Então, diante do erro na escolha da penalidade aplicada, o TST acertadamente confirmou a desconstituição da justa causa.
[1] Godinho Delgado, Maurício. Curso de Direito do Trabalho. 13a Edição. Ed. LTr. Pag. 1257.
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