Seguro de Vida, Aids, HIV e paciente assintomático

No Brasil, estima-se que haja cerca de 866 mil pessoas infectadas pelo HIV, sendo 43,9 mil novos casos registrados em 2018. Também chama atenção a informação de que ainda existem por volta de 135 mil brasileiros que convivem com o vírus, mas desconhecem o diagnóstico.

Vale registrar que são situações bastante distintas estar infectado pelo vírus HIV e desenvolver a Aids. Milhares de pessoas que convivem com o HIV são assintomáticas, sendo fundamental para isso o regular tratamento médico.

Como grande parte das pessoas infectadas está na fase da plena produção laborativa, consequentemente muitas são titulares de contratos de seguro de vida. Por isso, pretendo abordar alguns pontos relacionados a esse tema.

Invalidez decorrente da Aids causada pelo HIV

Atualmente boa parte dos seguros é vendida com a cobertura para Invalidez Funcional Permanente Total por Doença (IFPD) e isso representa um grande obstáculo para o recebido da indenização securitária, pois as seguradoras exigem “perda da existência independente do seguro…” e a inviabilidade “do exercício das relações autonômicas”.

Costumo dizer que querem um quadro de pré-morte. Dificilmente um portador do HIV chegará nessa condição, apenas quando estiver nas fases mais adiantadas da Aids ou se, diante da baixa imunidade, desenvolver outra enfermidade.

Por outro lado, há também várias apólices cuja cobertura é para Invalidez Permanente e Total por Doença (IPTD) – perceba-se que não há a expressão “funcional”. Nesses casos, as seguradoras alegam que a enfermidade precisa ser irreversível diante dos tratamentos disponíveis e causar invalidez total para qualquer trabalho. Portanto, aqui é possível pleitear o enquadramento daqueles que foram aposentados por invalidez.

Nas ações envolvendo essa discussão, as seguradoras alegam que a Aids não causa invalidez total, para qualquer trabalho, e que para determinadas atividades haveria apenas incapacidade parcial.

Felizmente, em ambos os casos, isto é, tanto quando há cobertura para IFPD como para IPTD, especialmente diante dos aspectos sociais envolvendo a Aids e do desfavorável prognóstico, a jurisprudência costuma mostrar-se favorável e sensível aos sofrimentos físico e psicológico envolvidos.

Abaixo transcrevo algumas decisões favoráveis aos portadores do HIV:

1) Apelação – ação declaratória c.c. cobrança – contrato de seguro de vida – incapacidade funcional por doença – Segurado portador do vírus HIV – Invalidez total e permanente configurada – Doença gradativa, incurável e de natureza irreversível – Indenização securitária devida – Sentença de improcedência reformada – RECURSO PROVIDO.  (TJSP;  Apelação Cível 1000212-71.2014.8.26.0597; Data do Julgamento: 08/11/2016; Data de Registro: 09/11/2016)

2) Seguro de vida em grupo – (…). – Segurado portador de HIV+ – Agravamento na evolução laboratorial e comprometimento imunológico – Caracterização de doença terminal, prevista no contrato como uma das causas de invalidez permanente total – Agravo retido e apelo não providos. (TJSP; Data do Julgamento: 12/03/2014; Data de Registro: 12/03/2014)

3) Seguro de vida e/ou acidentes pessoais – Apólice em grupo – Ação de cobrança – Demanda de segurada em face de seguradora – Sentença de improcedência – Reforma do julgado – Necessidade – Autora que é portadora do vírus HIV, bem como de miastenia gravis – Arguição da ré no sentido de que há ausência de cobertura, uma vez que a invalidez é apenas parcial por doença – Inconsistência – Documentos médicos que atestaram a invalidez por doença funcional para o exercício do trabalho habitual – Aposentadoria por invalidez concedida pelo INSS – Invalidez permanente e total configurada – Condições socioeconômicas altamente desfavoráveis – Apólice que previu cobertura para invalidez total e permanente por doença – Indenização securitária devida. Apelo da autora provido.

(TJ-SP – APL: 10100478820158260002 SP 1010047-88.2015.8.26.0002, Data de Publicação: 03/11/2015)

4) Apelação cível. seguro de vida. invalidez permanente e total por doença. comprovação. aids. seguro devido. recurso desprovido. 1. a aids é considerada patologia incurável que pode conduzir à incapacidade total e definitiva de seu portador para todo e qualquer trabalho, seja no âmbito público, seja no setor privado. 2. No caso dos autos, restou comprovado que o autor, reformado por invalidez pelo Exército por ser portador da doença referida, enquadra-se no conceito de Invalidez Permanente Total por Doença, consoante Cláusula 3ª, III das Cláusulas Complementares da Cobertura de Invalidez Funcional Permanente Total por Doença., fazendo jus à indenização securitária. 3. Em consonância ao Parecer do Ministério Público, recurso conhecido e desprovido. (TJ-AM – AC: 06307439420168040001 AM 0630743-94.2016.8.04.0001, Relator: Maria das Graças Pessoa Figueiredo, Data de Julgamento: 01/06/2020, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: 02/06/2020)

5) Apelação cível – ação de cobrança – seguro de vida em grupo ­ apelado que foi diagnosticado como portador do vírus hiv – negativa de cobertura na via administrativa pela seguradora ­ sentença de procedência – alegação de cerceamento de defesa – afastamento – mérito – aplicação do cdc ­ cláusula que conceitua a invalidez funcional permanente total por doença que não era de conhecimento do segurado – cláusulas contratuais apresentadas sem assinatura do consumidor – ônus da seguradora apelação cível nº 0003316-78.2016.8.16.0021 fls. 2 – descumprimento – dever de indenizar evidenciado nos termos da apólice – sentença mantida – adequação da verba honorária. recurso desprovido (TJPR – 9ª C.Cível – 0003316-78.2016.8.16.0021 – Cascavel – Rel.: Desembargador José Augusto Gomes Aniceto – J. 01.11.2018) (TJ-PR – APL: 00033167820168160021 PR 0003316-78.2016.8.16.0021 (Acórdão), Data de Julgamento: 01/11/2018, 9ª Câmara Cível, Data de Publicação: 08/11/2018)

6) direito processual civil. civil e do consumidor. doença incurável. hiv. sida/aids. incapacidade permanente e total para exercício militar. artigo 108, v, da lei 6.880/80 c/c artigo 1º, i, c, da lei 7.670/88. seguro de vida em grupo. contrato de adesão. invalidez para atividade militar. incidência do cdc. cláusulas antagônicas e restritivas. interpretação favorável ao consumidor. necessidade de transparência. cosseguro. responsabilidade solidária. termo inicial. juros. citação. correção monetária. data de ciência inequívoca do sinistro. sentença reformada.

Como se pode observar, existem várias decisões que condenam as seguradoras a realizarem o pagamento da indenização securitária mesmo quando a cobertura é apenas para IFPD – Invalidez Funcional Permanente por Doença.

Algumas consideram que o HIV afeta permanentemente o sistema imunológico e mesmo quando a perícia médica afirma não ser o caso de invalidez total, alguns desembargadores condenam a seguradora, às vezes, até na fase assintomática da doença, pois realizam uma interpretação com viés mais social.

Contudo, não se pode negar que existem muitas outras decisões em sentido contrário, isto é, julgando improcedente o pedido, por entender não haver quadro de invalidez total, muito menos de invalidez funcional. Por isso, é sempre necessária a análise do caso concreto e dos documentos médico e contratuais de que dispõe.

  • O militar portador de HIV é incapaz total e permanente, por mera disposição legal, tendo em vista que com a edição da Lei nº 7.670/88, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – SIDA/AIDS passou a figurar no rol das doenças que ensejam incapacidade definitiva, relacionadas no inciso V do art. 108 da Lei nº 6.880/80 (rol que trata das doenças incapacitantes no Estatuto Militar).
  • Se o contrato de seguro traz cláusulas antagônicas e limitadoras de direitos do consumidor segurado, tornando duvidosa eventual garantia de recebimento da indenização prevista na apólice, deve ser adotada a interpretação menos gravosa ao consumidor.
  • O contrato de seguro de vida em grupo, como tal firmado, compreende os riscos e peculiaridades profissionais exercidas pelo grupo signatário, que na hipótese, exercem o serviço militar, de forma a se deduzir que, se o militar não está mais apto a desempenhar suas atividades específicas, configurada está a invalidez permanente, independente da possibilidade de exercer outras atividades fora do ramo.
  • É possível a incidência de cláusulas restritivas nos contratos de seguro, no entanto, a sua aplicabilidade demanda prévia informação e transparência, haja vista a natureza consumerista do contrato da espécie, o que não ocorreu na hipótese, restando ineficaz sua aplicação.
  • Portanto, se a invalidez decorre de debilidade incurável e total que impeça o militar de exercer as atividades regulares, é imperioso o direito à indenização estipulada em seguro de vida em grupo. (…). (TJ-DF 20140111932653 0048594-85.2014.8.07.0001, Relator: SANDOVAL OLIVEIRA, Data de Julgamento: 03/05/2017, 2ª TURMA CÍVEL, Data de Publicação: Publicado no DJE: 15/05/2017. Pág.: 219/227)

Alegação de má-fé do segurado devido o HIV ser preexistente

Toda relação contratual, inclusive a de seguro, deve ser pautada pela boa fé entre as partes, desdobrando-se disso a obrigação de não ocultar toda informação que é relevante ao negócio entabulado.

Um problema comum enfrentado pelas seguradoras, não apenas com relação aos casos de segurados com o vírus HIV, mas de modo geral, é com relação às pessoas que têm conhecimento de que possuem determinada doença permanente, crônica ou grave, que tende a afetar especialmente a capacidade física, porém deixam de informar isso à seguradora e, em muitos casos, expressamente ainda declaram que não possuem qualquer enfermidade.

Fazendo um paralelo, é semelhante a quando o vendedor do seguro deixa de informar alguma cláusula que significa numa importante restrição aos direitos do consumidor. Em ambas as situações, são atitudes desleais e que precisam ser combatidas.

Com relação à doença preexistente, o maior problema reside no fato de a seguradora usar essa alegação sem que tenha provas ou certeza de que o consumidor tinha conhecimento tanto da enfermidade, quanto de sua irreversibilidade ou gravidade, ou seja, quando ela presume a má-fé do segurado e simplesmente deixa de pagar a indenização, obrigando-o ao sofrido caminho do Poder Judiciário.

Nesses casos, os tribunais fazem uma análise acerca dos elementos que comprovam ou não a má-fé do consumidor decorrente do conhecimento da moléstia preexistente à contratação do seguro.

No caso do vírus HIV a peculiaridade está no fato de que seu diagnóstico costuma ter data definida, bem diferente, por exemplo, de uma cardiopatia ou de um distúrbio osteomuscular, em que há um espaço cinzento entre os sintomas e o efetivo diagnóstico com sua extensão.

Quando um consumidor solicita a indenização do seguro por ser portador do vírus HIV, o representante da seguradora (regulador do sinistro), munido de uma procuração fornecida pelo próprio consumidor, faz uma varredura nos históricos médicos do consumidor junto à rede pública e privada de saúde, conseguindo descobrir se já tinha o diagnóstico ou se havia iniciado o tratamento para o controle da carga viral.

Apesar disso, algumas decisões entendem que se a seguradora deixou de solicitar exames médicos antes da contratação do seguro, então teria assumido o risco. Contudo, esse fundamento é tanto quanto defasado (tinha muito sucesso, mas isso há mais de dez anos…) e atualmente costuma ser rejeitado quando o conhecimento da doença é comprovado pela seguradora.

Vejamos algumas decisões

1) Apelação cível. seguro de vida. morte. prescrição. inocorrencia. alegação de omissão de doença preexistente à contratação. virus hiv- positivo. a não-realização de exame médico prévio no candidato segurado indica que a seguradora assumiu o risco quanto à eventual inexatidão das informações fornecidas pelo futuro segurado. a seguradora não se desincumbiu do ônus da prova na forma do art. 333, ii, do cpc. indenização devida. Negaram provimento à apelação. (Apelação Cível Nº 70047762984, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Artur Arnildo Ludwig, Julgado em 21/03/2013) (TJ-RS – AC: 70047762984 RS, Diário da Justiça do dia 28/03/2013)

2) apelação. ação de cobrança cumulada com indenizatória. seguro de vida em grupo. óbito do segurado, portador do vírus hiv. sentença de parcial procedência, determinando às rés o pagamento da indenização securitária ao companheiro e ao filho do falecido, bem como a compensação por danos morais. irresignação. lesão extrapatrimonial. configurada. recusa indevida de cobertura, sob o fundamento de doença preexistente. ausência de comprovação. súmula nº 609, do c. stj. quantum arbitrado em consonância com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. inteligência da súmula nº 343, deste e. tjrj. manutenção da solução de 1º grau. recurso conhecido e desprovido. (tj-rj – apl: 01628859420168190001, data de publicação: 2020-06-03)

3) recurso de apelação cível e adesivo – ação de cobrança de seguro de vida – procedência parcial – negativa de cobertura securitária – cancelamento da apólice pelo segurado – não comprovação –alegação de omissão de doença preexistente à contratação do seguro – inocorrência – má-fé não evidenciada – direito dos beneficiários à indenização –danos morais –configuração – termo inicial de incidência dos juros de mora – relação contratual – dies a quo – citação – correção monetária desde o arbitramento – honorários advocatícios – manutenção – verba fixada corretamente na forma dos §§ 3º e 4º, do art. 20, do cpc – recurso da seguradora desprovido e apelo das autoras parcialmente provido. Se seguradora alega que o segurado requereu o cancelamento da apólice de seguro, atrai para si o ônus de provar, através de documento idôneo fato impeditivo, modificativo ou extintivo do autor (art. 333, inc. II, do CPC). Contudo, se não comprova de forma satisfatória o alegado, o pagamento da indenização é medida que se impõe. Para que a seguradora possa valer-se da alegação de doença preexistente com o fito de ser exonerada do pagamento da indenização securitária, esta deve exigir a realização de exames prévios ou comprovar a efetiva má-fé do segurado. Precedentes do STJ. Se a seguradora assume o risco de garantir o pagamento de indenização ao segurado e seus beneficiários sem exigir exame prévio, ou mesmo averiguar o mínimo do preenchimento da proposta de seguro com relação ao questionamento básico do estado de saúde, não pode alegar má-fé ou omissão em benefício de sua própria torpeza. Ademais, salienta-se que a demandada não logrou êxito em comprovar que a patologia existente anterior ao óbito do segurado (HIV) tenha ligação direta com a “causa mortis” (câncer de colon). A recusa do pagamento da indenização pela seguradora, além de injustificada, causa aos beneficiários sofrimentos que não são apenas meros aborrecimentos, mas verdadeiro abuso de direito, a afetar a dignidade da pessoa humana. (…) (TJ-MT – APL: 00305810920118110041 MT, Data de Publicação: 14/10/2014)

4) civil. consumidor. apelação. contrato. seguro de vida. doença preexistente. dever de exame prévio. omissão. obrigação de pagar. dano moral. não configuração. correção monetária. negativa da cobertura. sentença parcialmente reformada.

  • A exigência de exame prévio para aceitação da proposta de seguro de vida não ofende aos princípios da dignidade da pessoa humana, legalidade ou viola a direito da personalidade, posto que se trata de contrato sui generis que traz em sua essência uma álea diferenciada para as partes.
  • Firmado contrato de seguro de vida, sem que a parte contratada exija os exames prévios para aceitar a proposta, assumirá o risco quanto a probabilidade da ocorrência do sinistro.
  • Salienta-se que a não indicação da declaração de saúde quanto a doença preexistente não exonera a seguradora de honrar com o pactuado, porque a má-fé não se presume, sendo necessário provar que o segurado queria fraudar o seguro e a seguradora não exigiu exames prévios.
  • Não obstante o descumprimento contratual gere transtornos, não são aptos, em regra, a caracterizar o dano moral.
  • A incidência da correção monetária deve incidir a partir da data do efetivo prejuízo, ou seja, a data da negativa da cobertura.
  • Recurso conhecido e parcialmente provido (TJ-DF 00024444120178070001 DF 0002444-41.2017.8.07.0001, Data de Julgamento: 14/11/2018)

Pelo que nota das decisões acima, deve haver cuidado especial com as provas a fim de averiguar se o segurado tinha ou não conhecimento de ser portador do vírus HIV antes da contratação do seguro. Além disso, se é o caso de óbito, analisar também se a causa da morte está relacionada com o HIV preexistente.

Conclusão

Em todo texto relacionado a seguro de vida chamo atenção para a relevância de alguns documentos: a proposta de seguro; o certificado individual; e a apólice onde estão as condições gerais do produto contratado.

É muito importante observar se esses documentos foram efetivamente assinados pelo contratante (pois podem apresentar – não duvidem disso – qualquer documento alegando que é o contratado, a segurança está na assinatura); se foram entregues ao consumidor; e se as informações relevantes – especialmente as restritivas de direitos, foram prestadas ao consumidor antes da contratação.

Havendo omissão da seguradora em alguma dessas situações, precisa analisar como comprovar isso, pois apesar de o Código de Defesa do Consumidor prever a inversão do ônus da prova, alguns julgadores praticamente esvaziam essa garantia.

Enfim, espero ter colaborado com informações que sejam úteis às pessoas que estejam vivenciando esses problemas e, a partir de então, reflitam se diante dos fatos e das provas que possui, é o caso de ingressar com ação judicial.


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Sobre o autor

Henrique Lima

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Henrique Lima

Henrique Lima é advogado atuante em defesas pessoas jurídicas e físicas em temas envolvendo direito tributário, administrativo, previdenciário (INSS e RPPS), do trabalho, do consumidor e de família.

É mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e pós-graduado (lato sensu) em direito constitucional, direito do trabalho, civil, consumidor e família. É sócio do escritório Lima & Pegolo Advogados Associados (www.limaepegolo.com.br) que possui unidades em Curitiba-PR, Campo Grande-MS e São Paulo-SP, mas atende clientes em vários Estados brasileiros.

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