O seguro de transporte de cargas e a alegação de excesso de velocidade

A atividade empresarial de transporte de cargas no Brasil é complexa, onerosa e repleta de riscos. Malha viária malconservada, alto índice de roubo de cargas, elevado custo trabalhista, baixa qualidade na mão de obra disponível, insustentável carga tributária entre outros fatores fazem com que o empresário necessite de muita organização e, na medida do possível, de precaução contra os vários riscos.

Por isso, a contratação de apólice de seguro para a carga é fundamental. Na prática, percebo que alguns clientes (geralmente os que possuem grandes frotas) podem até não possuir seguro para o veículo, contudo não deixam de tê-lo para a carga, e isso não apenas por ser obrigatório na cobertura básica, mas especialmente por ser importante no gerenciamento do risco empresarial.

É sabido que pelo contrato de seguro a seguradora assume determinados riscos que, na medida do possível, devem ser previstos. São feitos muitos e complexos cálculos para apurar índices de sinistralidade e, com isso, determinar o prêmio (quantia em dinheiro) a ser pago pelo cliente, no caso, a transportadora.

Teoricamente, todos os riscos expressamente excluídos na apólice ficam fora da responsabilidade da seguradora. Contudo, na prática, há vários detalhes a serem verificados. Um exemplo clássico é saber se a seguradora informou a transportadora acerca de todos os riscos excluídos e, ainda que tenha informado, às vezes a referida exclusão é abusiva por contrariar a própria essência do contrato de seguro.

Assim, sempre que há recusa no pagamento de algum sinistro, o contrato do seguro precisa ser estudado porque muitas vezes é possível judicialmente conseguir decisões favoráveis às transportadoras.

Enfim, feita essa pequena introdução, quero abordar neste texto uma situação que as transportadoras enfrentam com frequência: a recusa da seguradora em “pagar o sinistro” sob a alegação de que o excesso de velocidade implicou em agravamento do risco.

Normalmente os casos se apresentam das seguintes formas:

  • houve excesso de velocidade e a seguradora efetivamente comprovou;
  • houve excesso de velocidade, mas a seguradora não conseguiu comprovar de maneira cabal, utilizando-se apenas de deduções, de indícios, mas tudo de maneira frágil;
  • não há certeza se houve excesso de velocidade e, na dúvida, a seguradora concluiu em desfavor do cliente e
  • não houve excesso de velocidade e a seguradora deduziu erroneamente a partir de indícios (pois é impossível haver prova de algo que não existiu).

No tocante a “efetiva comprovação do excesso de velocidade”, ressalto que ninguém é obrigado a constituir prova contra seus próprios interesses e que é muito comum a seguradora concluir que houve excesso de velocidade a partir de meros indícios, utilizando-se de perícias frágeis e com base em critérios “científicos” questionáveis, de testemunhas inadequadas e, às vezes, até de provas ilícitas.

Alguns questionamentos sempre devem ser feitos:

  • o excesso de velocidade foi efetivamente comprovado?
  • o excesso de velocidade foi causa determinante para o acidente?
  • o excesso de velocidade foi intencional, isto é, o motorista quis o excesso de velocidade?
  • o excesso de velocidade decorreu de falta de sinalização clara e adequada?
  • o excesso de velocidade decorreu de alguma circunstância especial?

Na prática, são muitos os aspectos que devem ser avaliados e que podem favorecer a transportadora.

Vejamos trechos de alguns casos em que houve decisão judicial em favor da transportadora envolvendo seguro de transportes e acusação de excesso de velocidade.

1) mato grosso: (…) tombamento de caminhão – seguro da carga transportada – negativa do pagamento – alegação de excesso de velocidade – agravamento doloso do risco não comprovado – cobertura devida nos limites da apólice – sentença reformada – recurso provido. A constatação de que o condutor estava em alta velocidade ao tombar o caminhão de transporte de carga, por si só não constitui óbice ao cumprimento da obrigação da seguradora se não demonstrado que houve agravamento intencional de risco. (…) (TJ-MT – APL: 00002066620168110003371182018 MT)

2) BRASÍLIA: (…) Para livrar-se da obrigação securitária, a seguradora deve provar que a condução em alta velocidade teria sido, efetivamente, a causa determinante do sinistro e que o segurado tenha direta e intencionalmente agido de forma a aumentar o risco. (…) (STJ – REsp 1175577/PR)

3) RIO GRANDE DO SUL: (…) Não obstante, a cláusula contratual que exclui do risco contratado o tombamento de carga quando em decorrência de manobra do motorista é abusiva, porque a segurança da carga é inerente ao transporte realizado por caminhão. Dever de indenizar da seguradora. 3. Ausente, assim, situação de agravamento do risco, uma vez que não comprovada de forma cabal que o excesso da velocidade tenha sido causador direto do tombamento. (…) (TJ-RS – AC: 70077563310)

4) paraná: apelação cível – contrato de seguro – transporte de carga – tombamento na rodovia – aplicabilidade do código de defesa do consumidor – contrato de adesão – excesso de velocidade atestado por tacógrafo – cláusula excludente de indenização – redação sem os devidos destaques, de modo a permitir a imediata informação e compreensão do consumidor – apelação cível nº 1.626.701-5 2 contrato de adesão – inteligência dos art. 54, § 4º, e 51, xv, do cdc – abusividade reconhecida – inoponibilidade ao contratante – ausência de demonstração de agravamento intencional do risco – inaplicabilidade do art. 786 do código civil – excesso de velocidade que não guarda nexo causal com o acidente – prova que incumbia à ré – art. 333, ii, do cpc/73 – indenização securitária devida – ação julgada procedente – inversão dos ônus sucumbenciais – apelo provido. (TJPR – 9ª C.Cível – AC – 1626701-5 – Região Metropolitana de Maringá – Foro Central de Maringá – Rel.: Domingos José Perfetto – Unânime – – J. 06.04.2017) (TJ-PR – APL: 16267015)

5) SÃO PAULO: (…) Com efeito, o fato do motorista conduzir o veículo apenas 20 quilômetros por hora a mais do que a velocidade prevista na rodovia está longe de caracterizar culpa grave. Chega a ser absurdo uma seguradora, que trabalha com risco, ajuizar uma ação com pretensões de regresso pelo simples fato do motorista estar 20 quilômetros por hora acima da velocidade prevista na rodovia. A pequena diferença longe está de caracterizar culpa grave. (…) TOMBAMENTO DE CAMINHÃO COM AVARIAS NA CARGA SEGURADA. PAGAMENTO DE REPARAÇÃO PELA AUTORA, QUE SE VOLTA, EM REGRESSO, CONTRA A TRANSPORTADORA. Apólice com cláusula de dispensa do direito de regresso (DDR). (…) Condutor que, ouvido logo depois do acidente, alegou que o acidente ocorreu por movimentação da carga, e não por conta da velocidade do veículo. (…) (TJ-SP – AC: 00009879020158260299)

6) MINAS GERAIS: (…) Assim, conforme as definições acima expostas, o motorista da apelante ao adentrar na curva em excesso de velocidade foi imprudente, pois praticou uma conduta comissiva. (…) Verificando o disposto no Termo de Isenção de Regresso não foi prevista a imprudência como hipótese a permitir que a apelada ajuizasse ação de regresso contra a apelante, isentando, pois, a apelante pelo pagamento da carga avariada. (…) No caso destes autos, entendo inexistir a culpa grave, pois, a velocidade imprimida ao caminhão no momento do acidente não ultrapassava em muito a máxima permitida para o local, conforme acima já mencionado, não podendo ser equiparada a uma imprudência extraordinária por parte do motorista. (…) Desta forma, verifica-se estar a apelante amparada pelo Termo de Isenção de Regresso, por não ter o seu preposto atuado negligentemente ou com culpa grave, motivo pelo qual inexiste obrigação dela em ressarcir a apelada pelo valor das mercadorias avariadas. Pelo exposto, DOU PROVIMENTO NEGO PROVIMENTO ao recurso, reformando a sentença para julgar improcedente o pedido inicial. (TJ-MG – AC: 10000190037101001 MG)

7) paraná: (…) seguro de transporte rodoviário. acidente que acarretou a perda total das mercadorias transportadas. negativa de cobertura baseada no descumprimento contratual. alegação de que o motorista do veículo conduzia em velocidade excessiva. não acolhimento. conjunto probatório dos autos que não atesta o excesso de velocidade. ônus da prova que incumbia à seguradora (art. 333, ii, cpc/73). ausência de agravamento intencional do risco objeto do contrato. indenização securitária devida. sentença mantida. 3. recurso de apelação conhecido e deprovido. (TJPR – 8ª C.Cível – AC – 1609115-5 – Pato Branco – Rel.: Luis Sérgio Swiech – Unânime – – J. 16.03.2017) (TJ-PR – APL: 16091155 PR 1609115-5)

Em resumo, a jurisprudência demonstra que não basta ter havido “excesso de velocidade”, é necessário que ele tenha sido intencional (decorrente de dolo ou, pelo menos, de culpa grave) e, também, relevante e determinante na dinâmica do acidente.

Deve ficar claro, contudo, que essas decisões favoráveis não são unânimes e que tampouco significam permissão para que as transportadoras deixem de adotar todas as medidas de segurança necessárias.

Nas relações contratuais, como as de seguro, o princípio da boa fé é de grande importância e exige que ambas as partes hajam segundo a mais escorreita lealdade.

Desse modo, de um lado as transportadoras precisam adotar todas as medidas para evitar danos às cargas e, de outro lado, as seguradoras devem se abster de recusar o pagamento de sinistros sob as mais esdrúxulas alegações, como vemos cotidianamente, dando ensejo a muitas ações judiciais onde buscamos não apenas o pagamento do sinistro, mas, também, em alguns casos até mesmo o pagamento de indenização por danos morais e de lucros cessantes.

Enfim, havendo recusa em pagamento de sinistro por parte da seguradora, deve a transportadora contratar um advogado para uma detida análise de toda a situação jurídica, desde a fase de negociação, até o contrato efetivamente assinado, a dinâmica do acidente, a forma como houve a regulação do sinistro e, havendo pagamento, se foi no valor correto e, quando não houve, se a justificativa é lícita ou se convém buscar o Poder Judiciário para sanar a injustiça.


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Sobre o autor

Henrique Lima

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Henrique Lima

Henrique Lima é advogado atuante em defesas pessoas jurídicas e físicas em temas envolvendo direito tributário, administrativo, previdenciário (INSS e RPPS), do trabalho, do consumidor e de família.

É mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e pós-graduado (lato sensu) em direito constitucional, direito do trabalho, civil, consumidor e família. É sócio do escritório Lima & Pegolo Advogados Associados (www.limaepegolo.com.br) que possui unidades em Curitiba-PR, Campo Grande-MS e São Paulo-SP, mas atende clientes em vários Estados brasileiros.

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