O coronavírus e as obrigações contratuais (boletos, parcelas, cartão de crédito, etc.)

A pandemia do coronavírus está fazendo o mundo atravessar uma fase de incertezas onde já é possível vislumbrar um cenário de recessão econômica.

Especialmente no Brasil (e em outros países subdesenvolvidos) não é apenas a situação econômica que preocupa, mas também o consequente caos social. Diante dessa triste realidade que, a curto ou longo prazo, afetará a todos, muito se questiona acerca das obrigações contratuais.

Devo cumprir os contratos assumidos? Pagarei multas e juros moratórios? Devo renegociar? Cabe revisão?

Em primeiro lugar e de modo geral, devemos lembrar que as obrigações contratuais (cumprimento de obrigações, pagamento de parcelas, etc.) devem ser cumpridas, sob pena de incidir multas e juros moratórios (que não se confundem com os juros remuneratórios). Sobre isso, a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/19) diz que os contratos “presumem-se paritários e simétricos”, ou seja, justos.

No entanto, todo o direito contratual é regido por regras e princípios que estabelecem: de um lado, o dever de cumprir as obrigações assumidas e, de outro lado, situações em que esses deveres devem ser relativizados quando presentes determinadas condições.

Em outras palavras, todos sabem que é obrigação cumprir os contratos, incluindo-se pagar as parcelas, sob pena de incidir multas e juros quando houver atraso.

Mas é preciso frisar que as obrigações contratuais são regidas também por princípios jurídicos e normas de conceito aberto que podem ser bastante úteis nestas ocasiões.

Elas sofrem influência de princípios como os da dignidade da pessoa humana (constitucional), da solidariedade (constitucional), da boa fé objetiva, da lealdade contratual, do rebus sic stantibus, do dever de cooperação, da função social dos contratos, entre outros, todos buscando valorizar a “justiça contratual”.

Não há dúvida de que toda obrigação deve ser cumprida, contudo em determinadas situações, devido à excepcionalidade, é possível amenizar, revisar e até afastar alguns deveres contratuais.

Nesse sentido, certamente se enquadra no conceito de excepcionalidade a pandemia do coronavírus (Covid-19), que de forma abrupta levou grande parte da população brasileira à quarentena, ao isolamento social, impossibilitando o funcionamento de quase todo o comércio, das empresas, dos médios e pequenos negócios, dos profissionais liberais, dos autônomos, etc.

Assim, a meu ver, essa severa alteração da realidade social e econômica, ainda que temporária, justifica alterações em aspectos contratuais, com base nos princípios acima indicados.

Entretanto, deve haver muita cautela, porque cada situação concreta precisa ser analisada.

Conforme alertado por Marcelo Matos Amaro da Silveira (“Encargos Moratórios, coronavírus e a boa-fé objetiva”, publicado em JusBrasil em 22.03.2020), deve-se verificar se é situação de ser “impossível” cumprir a obrigação devido a fatores externos, ou se é “muito difícil” o cumprimento devido à condição pessoal do devedor da obrigação contratual.

Se existe absoluta impossibilidade, por situações alheias à vontade do contratante, nem é o caso de se falar em mora, porque o descumprimento contratual não foi por culpa ou vontade do devedor.

Essa total impossibilidade é mais rara de acontecer. Seria a hipótese, por exemplo, de o Governo determinar o fechamento de todos os bancos e a retirada do dinheiro de circulação ou, um pouco menos trágico, a proibição (devido à pandemia do Covid-19) da venda, comercialização ou circulação de calçados com solado de couro em todo o Brasil e alguém ter um contrato em que se obriga justamente a fornecer esse produto.

Certamente que a situação mais frequente é a de ser extremamente difícil, custoso, sacrificante e quase desumano o cumprimento da obrigação por conta dos desdobramentos econômicos e sociais provenientes da pandemia do coronavírus.

Nessa hipótese, como não se trata de impossibilidade de cumprimento, mas apenas de dificuldade, pelo menos teoricamente o credor teria o direito de exigir o cumprimento da obrigação.

Acontece que, diante da severidade da situação vivida por todos, tanto a exigência do cumprimento da obrigação, como também a imposição de multas e juros moratórios poderia ser considerada “abuso de direito”, previsto no artigo 187 do Código Civil: … comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé objetiva ou pelos bons costumes.

É sabido que a Lei da Liberdade Econômica estabeleceu que “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”, porém, essa própria regra, na sua parte final, deixa claro que é possível a revisão contratual, ainda que em caráter de exceção, que indubitavelmente é o momento histórico que vivemos.

Diante de tudo isso, qual a orientação?

Em primeiro lugar, sempre, tente negociar amigavelmente com a outra parte ou com o credor um ajuste nas condições do contrato, a fim de que ele fique mais adequado às condições econômicas e sociais atuais.

Mas, antes de partir para essa negociação, analise bem suas intenções e suas propostas, observe se, com elas, você não ficará numa posição privilegiada e acabe se tornando o beneficiado com tudo isso. Se o que você propor for exagerado ou injusto (imagine-se na posição do outro contratante), poderá inviabilizar qualquer negociação. Escute, ceda, reajuste sua proposta. Enfim, seja também maleável.

Se não for possível qualquer revisão amigável do contrato, restará a opção de ação perante o Poder Judiciário, mas não imagine que esse caminho será fácil e rápido.

Sendo essa a opção, tenha extremo cuidado com as provas, pois é óbvio que a Justiça não irá simplesmente revisar ou afastar a mora de todos os inadimplementos nesse período.

Cada situação será analisada individualmente. Exemplificativamente, tente guardar prova das seguintes situações:

– Como e quanto a quarentena afetou a minha fonte de renda? Por quanto tempo?

– Meu estabelecimento empresarial fechou? Por quanto tempo?

– Arquei com rescisões trabalhistas?

– Fiquei doente? Quantas pessoas em meu núcleo familiar próximo ficaram doentes?

– Os compromissos financeiros que eu tinha assumido, eram compatíveis com minha realidade antes da pandemia?

– Como foram as circunstâncias após a retomada do meu negócio ou trabalho?

– Renegociei com outros credores, em quais termos?

– Fui diligente e utilizei os benefícios (prorrogações) que o Governo e as empresas disponibilizaram no período crítico?

Esses são apenas alguns exemplos. Importante usar a criatividade e tentar documentar e registrar tudo que possa ser útil para demonstrar não apenas a boa-fé, mas também que foi feito tudo para tentar cumprir o contrato ou para regularizá-lo, antes de buscar o caminho da revisão judicial.

Mesmo com tudo isso, quem buscar o Poder Judiciário ainda dever levar em conta que termos como “imprevisibilidade”, “abuso de direito”, “excepcionalidade”, “boa-fé”, “função social do contrato”, entre outros, são conceitos indeterminados que serão interpretados conforme a inclinação dos Magistrados que analisarem a demanda. Num antigo texto, abordei sobre esses conceitos indeterminados, tentando dar alguma orientação sobre como a Justiça, especialmente o STF, julga determinadas questões e o porquê de tantas decisões divergentes sobre um mesmo assunto, a depender do Magistrado que o analisa. Se tiver interesse, leia aqui: https://henriquelima.com.br/como-julga-o-supremo-conceitos-indeterminados-i/

Voltando aos questionamentos iniciais, observe que os maiores bancos brasileiros, por meio da Febraban, já sinalizaram que prorrogarão por 60 (sessenta dias) os vencimentos de algumas dívidas. Outras empresas de grande porte também já divulgaram medidas semelhantes até em rede de televisão aberta. Os governos estão fazendo o mesmo com diversos impostos. Em vários locais, o corte do fornecimento de água e energia está proibido.

Quanto aos pequenos empreendimentos, aos contratos de aluguéis, aos contratos entre particulares, o que vale é o bom senso e tentar prorrogar determinadas obrigações e, em último caso, reajustar toda a base do negócio realizado, levando em consideração princípios como o da boa-fé objetiva, da função social do contrato, da construção de uma sociedade justa (constitucional), da dignidade da pessoa humana (constitucional), entre outros.

Apesar de tudo isso, se o leitor passar por situações em que é impossível o cumprimento da obrigação contratual e a parte credora se mostrar inflexível quanto a qualquer readequação do negócio entabulado, importante estar municiado das provas que exemplifiquei acima, e avaliar com seu advogado se a situação concreta preenche os requisitos necessários para pedir judicialmente a revisão do contrato, o afastamento da mora ou alguma outra medida que se mostre necessária.

Nesse vídeo, abordo o assunto. Assista e inscreva-se no canal (ative o sininho também rsrs).

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Sobre o autor

Henrique Lima

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Henrique Lima

Henrique Lima é advogado atuante em defesas pessoas jurídicas e físicas em temas envolvendo direito tributário, administrativo, previdenciário (INSS e RPPS), do trabalho, do consumidor e de família.

É mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e pós-graduado (lato sensu) em direito constitucional, direito do trabalho, civil, consumidor e família. É sócio do escritório Lima & Pegolo Advogados Associados (www.limaepegolo.com.br) que possui unidades em Curitiba-PR, Campo Grande-MS e São Paulo-SP, mas atende clientes em vários Estados brasileiros.

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