RESUMO: O presente trabalho analisa o desenvolvimento histórico-constitucional dos direitos fundamentais, aprofundando-se na problemática que envolve sua aplicação às relações privadas. Fundamenta-se em pesquisa doutrinária e jurisprudencial e traça um panorama sobre seu atual estágio de evolução, bem como se e como ocorre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal Brasileira. Por fim, analisa a maneira como o Supremo Tribunal Federal trata o tema. (escrito em 2010)
SUMÁRIO:
- Introdução;
- Evolução Histórica dos Direitos Fundamentais;
2. 1. O Desenvolvimento dos Direitos Fundamentais no Brasil; - Conceito de Direitos Fundamentais;
- Características dos Direitos Fundamentais;
- Titulares dos Direitos Fundamentais;
- Direitos Fundamentais e Relações Privadas;
6. 1. O Desenvolvimento dos Direitos Fundamentais no Brasil;
6. 2. Teoria da Inaplicabilidade dos Direitos Fundamentais Às Relações Privadas;
6. 3. Teoria da Aplicabilidade Indireta ou Mediata;
6. 4. Teoria dos Deveres de Proteção;
6. 5. Teoria da Aplicabilidade Direta ou Imediata; - Incidência dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas na Doutrina Brasileira;
- A Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Sobre a Aplicabilidade dos Direitos Fundamentais Às Relações Privadas;
- Conclusão;
Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Ao passo em que as relações privadas e comerciais se tornam cada vez mais impessoais, crescem as acusações de ofensas aos direitos e garantias considerados básicos, imprescindíveis aos cidadãos, ou seja, aos conhecidos Direitos Fundamentais.
Muito se clama pela aplicação do artigo 5º da Constituição Federal e, de tão conhecida essa norma, pode-se dizer que houve até sua “popularização” a ponto de cidadãos sem formação jurídica a alegarem como uma espécie de salvaguarda última de Justiça. Isso pode, com parcimônia, até ser considerado um avanço do ponto de vista da conscientização das pessoas acerca de seus direitos. Mas, por outro lado, há de se ter cuidado para que essa demasiada “exposição” não implique no seu enfraquecimento ou sua banalização.
Contudo, na medida em que se verifica a proliferação de leis, medidas provisórias, decretos, regulamentos, instruções normativas, portarias, contratos e outras fontes obrigacionais permeadas de iniqüidades torna-se compreensível a busca por uma norma que garanta a tão almejada Justiça Social.
Nesse sentido, ganha importância o estudo da irradiação dos Direitos Fundamentais às relações privadas, tal como se verifica no desdobramento, por exemplo, do princípio da dignidade humana, por meio de institutos como o da lesão e o da onerosidade excessiva, previstos no Código Civil.
Isso porque, não basta o conhecimento da literalidade dos muitos incisos do artigo 5º da Constituição Federal, principalmente após o Supremo Tribunal Federal afirmar que os direitos fundamentais não são apenas os expressamente elencados no segundo título da Carta Magna, podendo ser extraídos de quaisquer outras normas constitucionais, é necessário analisar seus variados aspectos teóricos e práticos, pois somente assim poder-se-á entender como ocorre sua concretização no campo das relações privadas.
Disso decorre, a importância do presente estudo, que, modestamente, pretende analisar alguns aspectos da teoria geral dos Direitos Fundamentais relacionados a sua concretização e aplicação às relações privadas. Verificando, inclusive, como o Supremo Tribunal Federal tem se manifestado acerca do assunto.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Os direitos fundamentais, tais como conhecidos atualmente, são resultado de uma evolução histórica ocorrida por meio das lutas, batalhas, revoluções e rupturas sociais que miravam a exaltação da dignidade do homem (SARMENTO, 2006, p. 4) e a construção de um pool de direitos para resguardá-la dos abusos de poder praticados pelo Estado.
A noção de direitos fundamentais é antiga e seu surgimento coincide com a constatação filosófica e religiosa de que os homens são detentores de direitos naturais e inalienáveis.
O surgimento formal dos Direitos Fundamentais ocorreu na segunda metade do século XVIII (DIMOULIS; MARTINS, 2007, p. 25) com sua materialização por meio de documento emanado da vontade soberana do povo ou, sob outra ótica, com a presença de elementos como Estado, Indivíduo (assim conceituado aquele detentor de direitos e deveres) e Texto Normativo.
Durante esse período, o colapso do sistema feudal e o surgimento de uma classe burguesa cada vez mais presente restabeleceram o poder político e, conseqüentemente, fortaleceram o Estado, mas, por outro lado, evidenciaram, também, as mazelas do Absolutismo, fazendo ecoar a necessidade de se estabelecer direitos mínimos de igualdade e de proteção da liberdade a serem respeitados pelo Poder Público.
Surgiu, então, campo fértil para idéias filosóficas como as Iluministas, que ganharam força no âmbito jurídico por meio do movimento constitucionalista (SARMENTO, 2006, p. 6), o qual ansiava limitar e disciplinar o poder estatal. Autores como Locke, Kant, Hobbes e Rousseau tentavam fundamentar a legitimidade do poder estatal por meio de diversos desdobramentos da Teoria do Contrato Social, segundo ensina o autor Daniel Sarmento (2006).
Esse aspecto é lucidamente explicado por Jane Reis Gonçalves Pereira (2006, pag. 123-124) in verbis.
O conceito de direitos humanos é um artefato da Modernidade. Foram as revoluções liberais que – apoiadas no substrato filosófico do contratualismo – converteram em textos jurídicos a concepção, que assumiu prevalência nos séculos XVII e XVIII, de que o homem é titular de direitos que antecedem a instituição do Estado, razão porque lhe deve ser assegurada uma esfera inviolável de proteção.
Nesse contexto, a Constituição surge como o instrumento de afirmação e realização dos direitos humanos, tendo por papel fundamental estabelecer um sistema adequado de contenção dos poderes estatais. O constitucionalismo e os direitos humanos são os pilares sobre os quais se erige o Estado Liberal, que vem a substituir o Estado Absoluto.
Como conseqüência da percepção da necessidade de um Estado servidor, respeitador, garantidor, ocorreram dois episódios de magistral importância para o início formal e solene dos direitos fundamentais: a Revolução Francesa e a independência e surgimento do Estado norte-americano, conforme nos ensina o mesmo autor.
A Declaração de Direitos do Povo da Virgínia (1776) e a Declaração Francesa (1789) inauguram a era dos direitos fundamentais constitucionais, sendo ambas de inspiração jusnaturalista, prevendo a todos os homens direitos naturais e inalienáveis (SARLET, 2007, p. 52).
Como ensinam os doutrinadores Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 222), a percepção de que os indivíduos têm antes direitos e somente depois obrigações perante o Estado lançou os direitos fundamentais a um nível de imprescindibilidade na sociedade.
Nesses primeiros documentos foram previstos os direitos fundamentais conhecidos como de “primeira geração”, caracterizados pelo dever de não-intervenção do Estado na esfera pessoal de cada indivíduo. Naquele momento ainda não havia preocupação de impor ao Estado medidas para minimizar problemas sociais.
Tanto na Declaração de Direitos da Virgínia de 1776 (Bill of Rights) como na Declaração de Direitos Francesa de 1789, por exemplo, constam expressas menções ao direito de igualdade, de liberdade religiosa, de propriedade e de imprensa, todos ligados ao dever de abstenção do Estado.
Entretanto, além das várias semelhanças, também havia diferenças marcantes entre essas duas declarações de direitos, pois enquanto na Declaração Americana de 1776 destacava-se a preocupação com as liberdades individuais, a Declaração Francesa de 1789 exaltava mais enfaticamente a idéia da igualdade entre os cidadãos (DIMOULIS; MARTINS, 2007, p. 29).
Após esses documentos iniciais, diversos Estados adotaram a prática de declarar solenemente os direitos considerados essenciais aos seus cidadãos. Houve, assim, uma maior efetivação dos direitos fundamentais durante o século XIX, conforme ensina o doutrinador Alexandre de Moraes (2006, p. 11):
A maior efetivação dos direitos fundamentais continuou durante o constitucionalismo liberal do século XIX, tendo como exemplos a Constituição espanhola de 19-3-1812 (Constituição de Cádis), a Constituição portuguesa de 23-9-1822, a Constituição belga de 7-2-1831 e a Declaração francesa de 4-11-1848.
Característica marcante nas constituições do século XX era a preocupação com os direitos sociais (MORAES, 2006, p. 12), também conhecidos como direitos fundamentais de “segunda geração”, os quais exigiam uma participação ativa do Estado na realização da Justiça Social, pois com o crescimento das desigualdades sociais não mais se justificava uma atitude passiva do Estado enquanto detentor do poder público.
Acerca da denominação “direitos sociais”, importante a lição extraída da obra Curso de Direito Constitucional, dos professores Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco (2007, p. 224):
Os direitos de segunda geração são chamados de direitos sociais, não porque sejam direitos de coletividade, mas por se ligarem a reivindicações de justiça social – na maior parte dos casos, esses direitos têm por titulares indivíduos singularizados.
Segundo Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2007, p. 32), a primeira constituição a estabelecer uma lista de direitos sociais como, por exemplo, o direito trabalhista e à educação foi a mexicana promulgada em 05 de fevereiro de 1917.
Em 1919 foi promulgada na Alemanha a Constituição de Weimar na qual também havia uma longa relação de direitos fundamentais previstos na sua Parte II. Incluíam-se tanto as clássicas obrigações de abstenção do Estado, como os modernos direitos relacionados à vida social, à religião, às Igrejas, à educação e à vida econômica (MORAES, 2006, p. 11).
Hodiernamente, as constituições prevêem, além dos direitos já citados (primeira e segunda geração), também os de “terceira geração”, conhecidos como direitos de solidariedade ou fraternidade, relacionados a titulares difusos ou coletivos com objetivos voltados para a coletividade.
É o caso, entre outros, do direito ao meio ambiente equilibrado, ao desenvolvimento social e econômico, à paz, à conservação do patrimônio histórico e cultural.
Por fim, cumpre registrar que os professores Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2007, p. 34) criticam a utilização da expressão “geração de direitos” para fins de classificação dos direitos fundamentais, por entenderem que passa a impressão de existir sucessão ou superação de uma geração pela outra e também porque não a consideram cronologicamente exata. Eis seus fundamentos:
Tal opção terminológica (e teórica) é bastante problemática, já que a idéia das gerações sugere uma substituição de cada geração pela posterior enquanto que no âmbito que nos interessa nunca houve abolição dos direitos das anteriores “gerações” como indica claramente a Constituição brasileira de 1988 que incluiu indiscriminadamente direitos de todas as “gerações”.
Além disso, o termo “geração não é cronologicamente exato. Sem se aprofundar nos aspectos históricos, pode-se indicar que já havia direitos sociais (prestações do Estado) garantidos nas primeiras Constituições e Declarações do século XVIII e de inícios do século XIX.
Entretanto, apesar desses lúcidos argumentos, preferimos neste trabalho utilizar a denominação “geração de direitos”, seja por ser amplamente utilizada pela doutrina, como também por ser normalmente citada em decisões do próprio Supremo Tribunal Federal do Brasil.
2.1 Desenvolvimento dos Direitos Fundamentais no Brasil
No Brasil o desenvolvimento dos Direitos Fundamentais tem uma trajetória parecida com a verificada em países da Europa e nos Estados Unidos.
A Constituição Imperial de 1824 estabeleceu uma extensa relação de Direitos Fundamentais – o artigo 179, que tratava dos direitos e garantias individuais, possuía trinta e cinco incisos. Essa prática de se estabelecer um rol com os Direitos e Garantias Individuais foi repetida na Constituição Republicana de 1891 e nas demais até a atual (MORAES, 2006, p. 14).
Porém, nesse período do Brasil Império, os Direitos Fundamentais sofreram o esvaziamento de sua eficácia com a criação do Poder Moderador, que conferia poderes quase ilimitados ao Imperador.
A Constituição Republicana de 1891 representou um grande avanço no sentido de estender a titularidade dos Direitos Fundamentais não só aos cidadãos brasileiros, como fazia a Carta anterior, mas também aos “estrangeiros residentes no país”. Houve, também, a inclusão do instituto do habeas corpus, de inegável relevância.
Os direitos sociais, também conhecidos como de segunda geração, surgiram a partir da Constituição de 1934, que prevê o “direito à subsistência” (caput do artigo 113), o dever de assistência aos indigentes (inciso 34, artigo 113) e incorpora ao ordenamento jurídico o Mandado de Segurança e a Ação Popular (DIMOULIS; MARTINS, 2007, p. 36).
A atual Constituição de 1988 prevê no Título II os direitos e garantias fundamentais, classificando-os em: 1) direitos individuais e coletivos; 2) direitos sociais; 3) direitos de nacionalidade; 4) direitos políticos e 5) direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos (MORAES, 2006, p. 25).
Segundo o professor Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 75) a Constituição Federal de 1988 é a primeira a dispensar aos Direitos Fundamentais o tratamento que lhe é adequado em virtude de sua inegável relevância e indiscutível indispensabilidade.
3. CONCEITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
O desenvolvimento e a transformação pelos quais passaram e passam os Direitos Fundamentais acrescentam especiais dificuldades à tarefa de sua conceituação.
Se o intuito fosse desenvolver um conceito apenas para os Direitos Fundamentais de uma determinada geração, o mister tornar-se-ia muito mais simples. Por exemplo, uma definição para os de primeira geração, poderia facilmente restringir sua titularidade passiva e ativa apenas ao Estado e a um único indivíduo. Mas, isso já não valeria se tratássemos de direitos fundamentais de terceira geração, cujo titular pode ser uma coletividade.
Esse obstáculo é aumentado pela pluralidade terminológica adotada pela própria Constituição Federal, que utiliza expressões como: direitos humanos; direitos e liberdade fundamentais; direitos e liberdades constitucionais; direitos fundamentais da pessoa humana; direitos da pessoa humana e, também, direitos e garantias individuais.
A dificuldade lançada por essa questão terminológica, na lição dos professores Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2007, p. 52), é basicamente por dois motivos: porque esses vários termos alcançaram significado diferentes na história constitucional mundial e porque podem dar argumentos para teses a favor ou contra a proteção de certos direitos.
José Afonso da Silva (1997, p. 174) faz lúcido comentário acerca dessa dificuldade de definição, cuja lição transcreve-se.
A ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico dificulta definir-lhes um conceito sintético e preciso. Aumenta essa dificuldade a circunstância de se empregarem várias expressões para designá-los, tais como: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem.
Ciente dessa barreira causada pela imprecisão terminológica, mas superando-a, cumpre verificar como alguns autores conceituam os Direitos Fundamentais nesse momento estudados.
A definição de Alexandre de Moraes (2006, p. 21) é a seguinte:
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direitos humanos fundamentais.
Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2007, p. 54) assim definem os direitos objetos deste estudo:
Direitos Fundamentais são direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual.
Alexandre de Moraes (2006, p. 22) cita a definição da Unesco da seguinte forma:
A Unesco, também definindo genericamente os direitos humanos fundamentais, considera-os por um lado uma proteção de maneira institucionalizada dos direitos da pessoa humana contra os excessos do poder cometidos pelos órgãos do Estado, e por outro, regras para se estabelecerem condições humanas de vida e desenvolvimento da personalidade humana (Les dimensions internationales des droits de l´homme. Unesco, 1978, p. 11).
Portanto, arriscando-nos a apresentar um conceito pessoal aos Direitos Fundamentais, definimo-los como sendo todas as normas que tenham como objeto a garantia de direitos considerados indispensáveis para o desenvolvimento saudável e digno do ser humano e da coletividade, podendo essas normas terem como destinatários tanto o Estado quanto os particulares.
4. CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Nessa empreitada de melhor compreender os Direitos Fundamentais torna-se necessário verificar suas principais características. Para tanto, pede-se vênia para utilizar a relação constante na obra dos professores do IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 229-241), acerca do tema:
- Universalidade: todos os seres humanos estariam abrangidos pelos Direitos Fundamentais, independente de sua situação social, política, econômica, sexo, idade, raça ou nacionalidade.
Essa característica deve ser aceita com ressalvas, pois com o aumento da relação de Direitos Fundamentais, principalmente após os de segunda, terceira e quarta geração, os mesmos passaram a ser cada vez mais específicos, de maneira que atualmente nem todos eles têm como titular a universalidade de indivíduos. É o caso, por exemplo, dos direitos voltados aos trabalhadores ou aos idosos. - Absolutos: os direitos fundamentais estão no patamar mais alto do ordenamento jurídico e não podem jamais sofrer restrições, limitados ou violados.
Essa característica não é aceita de maneira sagrada. Atualmente serve mais como uma maneira de demonstrar a importância dos Direitos Fundamentais, do que como uma característica propriamente dita. Até a Convenção de Direitos Civis e Políticos da ONU, de 1966, em seu artigo 18 admite limitações que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde, a moral pública ou os direitos e liberdades fundamentais de outros.
Quando o Direito Fundamental conflitar com outros direitos e garantias igualmente tutelados pela Constituição, o que se deve é procurar protegê-lo por meio da técnica da ponderação. - Historicidade: o alcance, o significado, a efetividade e até a existência de determinados direitos fundamentais variam conforme as circunstâncias históricas, de maneira que certo direito pode ser considerado indispensável atualmente enquanto que em outra época nem sequer era cogitado. É o exemplo do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225 da CF/88).
- Inalienabilidade/indisponibilidade: segundo essa característica, os Direitos Fundamentais são insusceptíveis de serem transferidos onerosa ou gratuitamente.
Esse caráter não é aplicável indistintamente a todos e quaisquer Direitos Fundamentais. É cabível especialmente aos ligados à própria sobrevivência do sujeito, bem como a direitos relativos à liberdade, à saúde, à integridade física entre outros.
Ressalve-se que apesar de determinados direitos serem indisponíveis, isso não importa dizer que não podem ser ocasionais e temporariamente limitados. - Constitucionalização: com a constatação da imprescindibilidade dos Direitos Fundamentais, esses passaram a necessitar de um suporte normativo capaz de os colocarem nos ápices dos ordenamentos jurídicos, imunes às mudanças ocasionais e pouco refletidas, encontrando abrigo nas Constituições dos Estados Modernos.
- Vinculação dos Poderes Públicos: todos os Poderes Públicos são vinculados aos Direitos Fundamentais, no sentido de que não se tratam de simples programas ou carta de intenção, mas de normas revestidas de razoável efetividade.
Dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são exigidos não apenas o respeito aos Direitos Fundamentais, como que numa atuação longínqua, mas em determinados casos também sua concretização com vistas a dar-lhes a máxima efetividade possível. - Aplicabilidade imediata: segundo essa característica, os Direitos Fundamentais não carecem de regulamentação pelo legislador ordinário para que possam ser aplicados. O reconhecimento da irradiação de seus efeitos tenciona evitar o esvaziamento de seus conteúdos.
É natural que determinados direitos, por outro lado, precisem de um delineamento mais palpável por parte do legislador infraconstitucional, como é o caso, por exemplo, do direito à ampla defesa ou do direito à propriedade.
Entretanto, a falta de eventual regulamentação normativa não pode ser aventada com o intuito de negar a garantia do direito postergado ou ameaçado, cabendo ao Judiciário, nesses casos, concretizá-los, tanto quanto possível.
Enfim, são essas as características que, seguindo a obra supra citada, entendemos que não poderiam deixar de serem explicitadas. É normal que existam distintas propriedades dos Direitos Fundamentais descritas por outros autores, mas, tendo em conta o intuito deste trabalho, esses são os aspectos que consideramos inesquecíveis.
5. TITULARES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Como visto no capítulo anterior, uma das características dos direitos fundamentais é a universalidade, no sentido de que todos os seres humanos são seus titulares, independente de raça, cor, sexo, posição social, convicções políticas, filosóficas ou religiosas.
Entretanto, é importante salientar que com a especificação dos direitos fundamentais, alguns desses não podem ser invocados por quaisquer pessoas, pois são essencialmente direcionados a determinados setores da sociedade ou grupo de pessoas, como, por exemplo, os direitos dos trabalhadores, dos idosos ou dos deficientes.
Mas além dessa exceção que decorre de questões lógicas, algumas situações merecem ser analisadas, mesmo porque como nossa Constituição utiliza indistintamente termos como Direitos Humanos ou Direitos da Pessoa Humana, pode causar a impressão de que somente as pessoas naturais podem ser titulares dessa espécie de direitos.
Uma das situações que merece atenção é o das pessoas jurídicas. A doutrina não diverge quanto à possibilidade de serem titulares de direitos fundamentais, em que pese esses terem sido inicialmente direcionados às pessoas humanas. Aliás, atualmente verifica-se que existem até mesmo direitos que são direcionados especificamente a elas.
É o caso, por exemplo, do direito de não interferência estatal no funcionamento de associações, previsto no inciso XVIII do artigo 5º da Constituição Federal, bem como o direito de não serem compulsoriamente dissolvidas, previsto mais adiante no inciso XIX do mesmo artigo.
Mas além desses que lhes foram originariamente direcionados, as pessoas jurídicas também podem invocar direitos possíveis como o da ampla defesa, o da igualdade, o da liberdade de expressão e quaisquer outros que não sejam incompatíveis com sua realidade.
Outra peculiaridade conveniente de ser mencionada é a do estrangeiro não residente no país.
Imagine-se a comum hipótese de um estrangeiro de passagem pelo país e que é detido por suspeita de carregar consigo droga ilícita. A questão cinge-se a verificar se, por não residir no país, poderia ele ser submetido à tortura, à condenação sumária ou até impossibilitado de ser beneficiário de ordem de habeas corpus.
Em que pese o caput do artigo 5º garantir os direitos fundamentais aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, essa norma apenas confirma uma possibilidade, mas não tem o alcance de excluir os demais estrangeiros, pois não o fez expressamente. Além do mais, o princípio da dignidade humana não conviveria com a possibilidade de se excluir determinados direitos tão apenas com base na nacionalidade.
Frise-se que quando a Constituição Federal se refere ao brasileiro como titular dos direitos fundamentais, não exige que esse resida, mesmo que ocasionalmente, no país.
É claro que da mesma forma que as pessoas jurídicas não podem ser titulares de determinados direitos fundamentais, os estrangeiros não podem ser dos que se ligam diretamente aos cidadãos e aos que residem no país, como é o caso dos direitos sociais trabalhistas.
Percebe-se que a cada categoria de direitos uma determinada classe de pessoas é beneficiada, excluindo-se as demais, de maneira a mitigar a originária característica da universalidade.
6. DIREITOS FUNDAMENTAIS E RELAÇÕES PRIVADAS
O reconhecimento do potencial normativo da Constituição aliado à constitucionalização de diversos assuntos atinentes aos relacionamentos privados colaborou para que o tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais fosse cada vez mais estudado, despertando interesse entre os estudiosos do direito.
Não existe um entendimento pacificado acerca da possibilidade ou da impossibilidade de aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, nem sobre como ocorre a eventual aplicabilidade.
Historicamente os direitos fundamentais foram concebidos para proteger os indivíduos dos abusos do poder estatal contra a liberdade e a dignidade humana. E esse é um dos fundamentos utilizados pelos que resistem a reconhecer a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações particulares.
A História aponta o Poder Público como o destinatário precípuo das obrigações decorrentes dos direitos fundamentais. A finalidade para a qual os direitos fundamentais foram inicialmente concebidos consistia, exatamente, em estabelecer um espaço de imunidade do indivíduo em face dos poderes estatais. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 265).
Entretanto, a intenção inicial de os direitos fundamentais frearem as atividades estatais não se deve por se tratar pura e simplesmente do Estado, mas porque era esse quem representava e ainda representa a maior ameaça institucionalizada ao homem e aos seus direitos primordiais.
Portanto, fosse a ameaça originada de outra fonte que não o Estado, certamente que os direitos fundamentais teriam como objeto a regulamentação da relação entre o indivíduo e essa outra fonte de perigo.
Dessa maneira, na medida em que ocorreu o desenvolvimento da sociedade, calcado no fortalecimento do Estado de Direito, surgiram novos atores com força social, jurídica, econômica e política capazes de representar ameaça aos direitos primários das pessoas, tornando necessário que o sujeito passivo dos direitos fundamentais deixasse de ser apenas o Estado, para voltar-se também a quem quer que possa violá-los ou ameaçá-los.
Os doutrinadores Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2007, p. 109) assim se manifestaram, in verbis:
O reconhecimento do efeito horizontal parece ser necessário quando encontramos, entre os particulares em conflito, uma evidente desproporção de poder social. Uma grande empresa é juridicamente um sujeito de direito igual a qualquer um de seus empregados. Enquanto sujeito de direito, a empresa tem a liberdade de decidir unilateralmente sobre a rescisão contratual. Na realidade, a diferença em termos de poder social, ou seja, o desequilíbrio estrutural de forças entre as partes juridicamente iguais é tão grande que poderíamos tratar a parte forte como detentora de um poder semelhante ao do Estado.
Mas a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais deve ser analisada não só nos casos de visível desigualdade entre as pessoas privadas, mas também em hipótese de real igualdade.
Por isso, os direitos fundamentais devem ser considerados como garantias dos cidadãos contra os abusos cometidos por quaisquer pessoas capazes de fazê-los, independentemente de sua condição pública ou privada, pois para o ofendido é indiferente qual seja a fonte de agressão ao seu direito.
É certo, entretanto, que em virtude da autonomia privada que revestem os particulares, a incidência dos direitos fundamentais em suas relações não poderá se dar de maneira exatamente idêntica a que ocorre quando se tem o Estado em um dos pólos.
Talvez essa seja uma das questões de maior relevo no assunto, pois urge encontrar um equilíbrio entre os direitos fundamentais e a autonomia privada. Isso porque, quanto maior a incidência dos direitos fundamentais nesses relacionamentos, mais se poderá estar mitigando o poder de autodeterminação das pessoas.
Para essas ponderações a doutrina criou teorias para fundamentar tanto a inaplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas, como para defender sua aplicabilidade direta ou indireta.
6.1. Teoria da Inaplicabilidade dos Direitos Fundamentais às Relações Privadas
Os que advogam a inaplicabilidade dos direitos fundamentais às relações entre pessoas de direito privado o fazem, normalmente, invocando que foram elaborados historicamente para proteger os cidadãos contra os abusos do Estado, bem como que se estaria agredindo demasiadamente a esfera da autonomia individual e que conferiria aos juízes exagerados poderes tendo em vista a natural abstração que reveste as normas fundamentais, conforme ensina Daniel Sarmento (2006, p. 197).
Negar a vinculação dos particulares por conta da origem histórica dos direitos fundamentais não parece ser uma alternativa razoável por que, como já citado acima, mirava-se o Estado apenas porque esse era, e ainda é, o maior potencial ofensor dos direitos e liberdades individuais dos cidadãos.
Fosse outra a maior fonte de ameaça, como, por exemplo, a Igreja ou a Burguesia, certamente que a Carta de garantias instituídas nas revoluções do século XVIII não teriam como preocupação o Estado, mas sim quem efetivamente representasse o perigo.
Por isso, se atualmente não só o Estado, como também outras pessoas podem representar ameaça aos direitos fundamentais instituídos na Constituição Federal, nada mais natural que esses também devam ser obrigados a respeitá-los.
Mas isso, considerando-se os que se situam em posição de superioridade econômica, política, social ou jurídica em relação a determinado indivíduo.
Porém, mesmo que se trate de uma relação em igualdade fática, ainda assim devem ser ambas as partes obrigadas a respeitar os direitos fundamentais porque, a nosso ver, essas garantias têm como escopo primordial resguardar aqueles direitos considerados indispensáveis ao desenvolvimento adequado do ser humano.
Em outras palavras, não se trata de coibir uma ou outra determinada pessoa, seja jurídica ou natural, de direito público ou privado, mas de efetivamente preservar aquilo que o constituinte entendeu como inalienável ao ser humano ou até mesmo à coletividade, independentemente de quem seja o potencial ofensor.
Quanto ao argumento de que haveria uma demasiada intromissão na autonomia individual, é de se notar que a questão da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais comporta temperamentos e ponderações. O que não se pode pretender é que sejam simplesmente afastados os direitos fundamentais daquele relacionamento travado. Eis o escólio dos professores Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco (2007, p. 268).
Há, então, de se realizar uma ponderação entre o princípio da autonomia privada e os valores protegidos como direitos fundamentais, tendo como parâmetro que a idéia do homem, assumida pela Constituição democrática, pressupõe liberdade e responsabilidade – o que, necessariamente, envolve a faculdade de limitação voluntária dos direitos fundamentais no comércio das relações sociais, mas também pressupõe liberdade de fato e de direito nas decisões sobre tais limitações.
No que diz respeito ao excessivo poder conferido aos juízes dada a abstração das normas que tratam de direitos fundamentais, tem-se que levar em conta que atualmente as cláusulas abertas, gerais, abstratas, são constantemente utilizadas pelo legislador, havendo uma superação da fase em que se pretendia prever todas as situações mundanas possíveis. Ou seja, pode-se verificar na legislação infraconstitucional que os juízes já possuem razoável liberdade na determinação e na fixação dos conceitos e dos alcances das várias cláusulas abertas.
Além do mais, ao julgar determinada disputa com embasamento nos direitos fundamentais o juiz não estará livre para entender o que quiser, pois em que pese a abstração de alguns conceitos, deverá sempre se pautar pelos princípios explícitos e implícitos do ordenamento jurídico, pesando sobre o magistrado o ônus de demonstrar a razoabilidade de sua decisão, por conta do princípio do livre convencimento motivado.
Enfim, em que pese serem legítimos os receios por parte dos defensores da inaplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas, suas razões são contornáveis com a ponderação pautada na proporcionalidade e na razoabilidade, sempre tendo como guia a distribuição da Justiça.
6.2 Teoria da Aplicabilidade Indireta ou Mediata
Trata-se de teoria intermediária à que nega a incidência dos direitos fundamentais às relações privadas e à teoria que defende sua incidência plena e incondicionada.
Para essa teoria, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais é alcançada por meio das cláusulas abertas e dos conceitos jurídicos indeterminados previstos na legislação infraconstitucional.
Segundo o doutrinador Daniel Sarmento (2006, p. 210), essa é a adotada atualmente pela maioria dos juristas alemães e pela Corte Constitucional Alemã.
Seus teóricos procuram amenizar a total negativa de aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações horizontais, a partir do reconhecimento de que as normas inseridas no texto constitucional projetam efeitos sobre todo o ordenamento jurídico, ou seja, sobre todos os outros ramos do direito, porém se recusam a possibilitar que o indivíduo possa invocar diretamente a Carta Magna, o que só seria permitido em caso de ausência legislativa ou de inconstitucionalidade da norma infraconstitucional. Paula Fernanda Alves da Cunha Gorzoni (2007, p. 18) assim delineia os termos gerais dessa teoria, in verbis.
A tese da eficácia mediata ou indireta afirma que os direitos fundamentais somente poderiam ser aplicados entre particulares após um processo de transmutação, por intermédio do material normativo do próprio direito privado. Essa aplicação se daria da seguinte forma: primeiramente, a eficácia dos direitos fundamentais estaria condicionada à mediação concretizadora do legislador de direito privado, pois cabe a ele o desenvolvimento “concretizante” desses direitos por meio da criação de regulações normativas específicas que delimitem o conteúdo, as condições de exercício e o alcance dos direitos nas relações entre particulares. Na ausência de desenvolvimento legislativo específico, compete ao juiz dar eficácia as normas de direitos fundamentais por meio da interpretação e aplicação das cláusulas gerais e conceitos indeterminados do direito privado. Nesta teoria, a Constituição possui somente uma função de guia, oferecendo diretrizes e impulsos para uma evolução adequada do direito privado.
Verifica-se, portanto, que a teoria da eficácia indireta ou imediata é mais cautelosa quanto aos poderes outorgados aos juízes e quanto a preservação da autonomia privada, preferindo que seja adotada, no caso concreto, sempre antes a solução dada pelo legislador infraconstitucional e somente quando essa for incompatível com o texto constitucional ou quando for ausente é que poderá servir o texto da Carta Magna como fundamento jurídico único.
6.3 Teoria dos Deveres de Proteção
Liga-se à idéia de que o Estado, como destinatário dos direitos fundamentais, tem o dever não apenas de abster-se de ofendê-los, mas, também, de impedir que sejam violados pelos particulares. Para o desempenho de tal mister, o Estado dispõe dos poderes de legislar, de polícia, de fiscalizar, de regulamentar, enfim, pode valer-se dos meios necessários para que os direitos fundamentais sejam respeitados por quem quer que seja.
Diferencia-se da teoria da aplicabilidade indireta justamente por impor ao Estado o dever de vigilância. Nesse sentido, José Carlos Vieira de Andrade (2001, p. 248-249) esclarece:
Estas teorias de dever de proteção, embora sejam tributárias de uma idéia de aplicabilidade mediata, alargam a aplicabilidade dos direitos fundamentais para além do tradicional preenchimento das cláusulas gerais de direito privado, impondo aos poderes públicos (ao Legislador, à Administração e ao Juiz) a obrigação de velarem efectivamente por que não existam ofensas aos direitos fundamentais por parte de entidades privadas.
É evidente a dificuldade de se aceitar essa teoria sem ressalvas ou amenizações, pois se o Estado for responsabilizado por todas as ofensas aos direitos fundamentais causadas pelos particulares aos seus pares, o Poder Público será obrigado a interferir e limitar a autonomia privada demasiadamente, o que implicaria justo na situação mais indesejada pelos que criticam a teoria da aplicabilidade direta, que é a interferência no poder de autodeterminação das pessoas.
6.4 Teoria da Aplicabilidade Direta ou Imediata
Essa teoria defende que os direitos fundamentais constitucionais podem não apenas ser invocados pelos particulares em suas recíprocas relações, mas também servem como fonte direta de embasamento para decisões judiciais, ou seja, independentemente de quaisquer outras disposições infraconstitucionais.
Parte do reconhecimento de que no atual estagio de evolução da sociedade são muitas as fontes de perigo aos direitos fundamentais, não se limitando mais apenas ao Estado.
Na teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais às relações privadas, assim como ocorre na doutrina que nega a aplicabilidade e na que a aceita de maneira indireta, existe a relevante preocupação de resguardar a autonomia individual, pois reconhece que a aplicação dos preceitos fundamentais de forma irrestrita pode acabar causando um resultado oposto ao da buscada Justiça.
Entretanto, essa eventual limitação da autonomia privada pode ser contornada com a ponderação a ser realizada pelo juiz na solução do caso concreto. Jane Reis Gonçalves Pereira (2006, p. 192) refuta a idéia de que pode ocasionar inaceitável ingerência na autonomia privada e diz que essa liberdade já está inegavelmente mitigada em virtude das modernas condições de vida.
Dessa forma, o alegado risco que a eficácia imediata dos direitos representa para a tutela da liberdade privada e para a autonomia do direito civil insere-se, em verdade, no problema mais amplo e complexo que diz respeito a saber até que ponto a constituição pode determinar o modo pelo qual os indivíduos devem conduzir suas vidas. Este problema, por sua vez, está ligado à própria crise do paradigma moderno.
Essa teoria é bem explicada por Paula Fernanda Alves da Cunha Gorzoni (2007, p. 17), in verbis.
A tese da aplicabilidade direta ou imediata defende efeitos absolutos dos direitos fundamentais entre particulares. Essa corrente encontra seu fundamento na idéia de que, em virtude de os direitos fundamentais constituírem normas de valor válidas para todo o ordenamento jurídico, não é possível aceitar que o direito privado venha a formar uma espécie de gueto, à margem da ordem constitucional. Por isso, não é necessário existir uma mediação legislativa para que os direitos fundamentais produzam efeitos entre particulares: eles exercem influência de forma direta, irradiando efeitos diretamente da Constituição e não por meio de normas infraconstitucionais, especialmente de direito privado (efeitos estes que podem, inclusive, modificar as normas infraconstitucionais).
Enfim, percebe-se que é notoriamente a doutrina mais progressista e que não se contenta em aguardar que o legislador infraconstitucional trabalhe para definir conceitos, delimitar âmbito de aplicabilidade ou regulamentar forma de vinculação, pois reconhece eficácia máxima aos direitos fundamentais e permite que os jurisdicionados possam exigi-los diretamente do texto constitucional.
7. A INCIDÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS NA DOUTRINA BRASILEIRA
A negativa de incidência dos direitos fundamentais às relações privadas não parece ser compatível com a realidade constitucional brasileira, pois essa expressamente elegeu como objetivo do Estado a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o que, acreditamos, não é possível se permitimos que injustiças permeiem as relações entre os particulares.
Um dos argumentos mais relevantes que se lança contra a incidência dos direitos fundamentais às relações privadas é o do problema da interferência na autonomia privada e realmente, essa, talvez, seja a questão mais intrincada. Porém, pode ser contornada com a utilização do magistrado da técnica de ponderação dos interesses e dos direitos em conflito.
Conforme já vimos, existem também outros argumentos levantados contra essa vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Porém, todos os problemas e dificuldades aventados são contornáveis.
Aliás, é natural que a discussão acerca de direitos fundamentais, de distribuição de justiça, de combate à desigualdade social, de respeito à autonomia privada e à dignidade do homem, apresente um grau de abstração e subjetivismo maior, mas esse motivo não pode ser considerado obstáculo intransponível para se afastar de maneira absoluta a incidência dos direitos fundamentais às relações privadas.
Na doutrina brasileira existe uma clara inclinação em reconhecer que os particulares não só estão vinculados aos direitos fundamentais constitucionais, mas também que essa vinculação ao texto constitucional é direta e imediata. Os doutrinadores chegam a essa conclusão pautados, normalmente, na alegação de que os direitos fundamentais previstos na constituição, como instrumentos de combate às desigualdades sociais, são importantes demais para ficarem à mercê da atividade legislativa ordinária, muitas vezes deficitária. Essa é uma idéia presente nos trabalhos de Daniel Sarmento (2006, p. 257), Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 152), Carlos Roberto Siqueira Castro (2003, p. 246) e Gustavo Tepedino (1999, p. 49).
Concordamos que existe a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, porém entendemos deva ser de forma preferencialmente indireta, pois em que pese o argumento de que os direitos fundamentais servem como instrumento de combate às desigualdades, ousamos chamar atenção para o fato de que no Brasil existem normas infraconstitucionais modernas, com cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados em seu texto que possibilitam ao Juiz julgar com base nos critérios fixados pelo constituinte de desenvolvimento de uma sociedade justa, solidária e livre, tornando, portanto, normalmente, desnecessária a utilização da Constituição Federal como fundamento único, direto e exclusivo.
São exemplos dessas legislações o Código de Defesa do Consumidor, a Lei do Inquilinato, a Consolidação das Leis Trabalhistas, a Lei de Introdução ao Código Civil e mesmo o Código Civil. Todas essas leis possuem em seu bojo dispositivos capazes de servir como instrumentos para a concretização dos direitos fundamentais constitucionais, tornando desnecessário que o julgador busque embasamento diretamente no texto constitucional.
Os doutrinadores Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco (2007, p. 272) assim se manifestam:
No Brasil, os direitos fundamentais são protegidos nas relações entre particulares por meios variados. Eles o são por via de intervenções legislativas – basta notar a pletora de atos legislativos assegurando a formação livre da vontade dos economicamente mais fracos e prevenindo a discriminação, no âmbito das relações civis, em especial nas de consumo e nas de trabalho.
A utilização das normas infraconstitucionais como fundamento de imediato para solução de controvérsias apresenta a vantagem de terem passado pela casa legislativa, sendo o resultado dos debates e das apreciações dos diversos setores da sociedade lá democraticamente representados, e que puderam encontrar o equilíbrio entre a autonomia individual e o interesse público de distribuição de justiça.
Porém, se assim não ocorreu e a referida norma se mostra permeada de inconstitucionalidade, pode então ser afastada pelo julgador, mas, se por outro lado essa norma está efetivamente de acordo com os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, deve ela ser o fundamento para resolução do caso concreto.
Enfim, seja de forma direta ou de forma indireta, no ordenamento jurídico brasileiro os direitos fundamentais constitucionais projetam efeitos, sendo mais intensos em alguns casos e menos em outros.
Assim, entendemos que, preferencialmente, a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais deve ser indireta, mas em caso de inconstitucionalidade da lei ou de omissão legislativa, pode e deve o juiz valer-se do diretamente texto constitucional.
8. A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A APLICABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ÀS RELAÇÕES PRIVADAS
Segundo o professor Daniel Sarmento (2006, p. 262), o Supremo Tribunal Federal aponta na direção de aceitar a aplicação direta dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna às relações privadas, porém o Excelso tribunal o faz sem travar, antes, uma discussão acerca do tema, ou seja, sem preceder uma fundamentação teórica que embase a opção seguida. Eis a conclusão a que chega o ilustre doutrinador:
Por estes acórdãos, infere-se que o STF aceita a aplicação direta de direitos fundamentais na resolução de conflitos interprivados independentemente de mediação do legislador. Embora o Pretório não tenha chegado a discutir em seus julgados as diversas teorias sobre a forma de vinculação dos particulares aos direitos constitucionais, é possível extrair dos seus posicionamentos a adesão à tese mais progressista, da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Já os professores Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco (2007, p. 273) assim definem o posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca do tema:
Quanto à possibilidade de o direito fundamental ser suscitado diretamente como razão para resolver pendência entre particulares, há precedentes do Supremo Tribunal Federal admitindo o expediente. O acórdão do STF em que mais profunda e eruditamente o tema foi explorado concluiu que normas jusfundamentais de índole procedimental, como a garantia da ampla defesa, podem ter incidência direta sobre relações entre particulares, em se tratando de punição de integrantes de entidade privada – máxime tendo a associação papel relevante para a vida profissional ou comercial dos associados.
Em excelente pesquisa jurisprudencial acerca da maneira como o Supremo Tribunal Federal tem julgado casos que envolvem vinculação de particulares aos direitos fundamentais, Paula Fernanda Alves da Cunha Gorzoni (2007, p. 75-76) chega às constatações de (1) que normalmente há vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, (2) que essa vinculação normalmente é direta e (3) que o Supremo Tribunal Federal normalmente trata o tema de forma implícita, sem maiores embasamentos.
Enfim, o Supremo Tribunal Federal reconhece a eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas e também que essa vinculação ocorre de forma direta, independentemente de qualquer atividade legislativa.
9. CONCLUSÃO
Ao final do presente estudo, pode-se verificar que os direitos fundamentais atingiram um reconhecimento social que os tornaram imprescindíveis às sociedades, representando uma garantia de justiça.
Longo foi o desenvolvimento necessário para que esse status fosse atingido. As lutas, as vidas, as guerras, as revoluções foram válidas para que os cidadãos possam contar um mínimo essencial inatacável pelos abusos externos.
Esse mínimo essencial representa a idéia central dos direitos fundamentais, no sentido de que são garantias de defesa das liberdades necessárias para que cada pessoa, física ou jurídica, possa desenvolver-se, contribuindo, assim, para o progresso da sociedade.
Atualmente quase não existe resistência à idéia de que os direitos individuais também irradiam efeitos para as relações particulares, porém o que se nota é um grande debate acerca da maneira como deve ocorrer a vinculação dos atores privados.
A teoria da eficácia direta e imediata tem grande apelo na utilização dos direitos fundamentais como instrumento de progresso social e de erradicação das desigualdades. A doutrina brasileira é, em sua maioria, sua defensora. Nossa Suprema Corte a aplica, porém sem adentrar em seus meandros doutrinários.
A teoria da eficácia indireta e mediata revela-se mais preocupada com o excesso de abstração e é defensora da autonomia individual, porém aceita que a vinculação se dê diretamente quando há lacuna legislativa ou quando a forma encontrada pelo legislador se verifica incompatível com a Constituição Federal.
Revelamos preferência pela aplicabilidade indireta e mediata, pois entendemos que as normas infraconstitucionais brasileiras, em sua maioria, fornecem ao julgador as ferramentas necessárias para que possa dar ao caso concreto a melhor decisão possível sob a ótica do respeito aos direitos fundamentais. Porém, quando não há essa regulamentação infraconstitucional ou quando é insuficiente ou incompatível com a própria Constituição Federal, entendemos perfeitamente possível que o julgador utilize diretamente o texto constitucional.
Enfim, ambas as teorias possuem virtudes e suas preocupações são legítimas e necessárias. Porém, a nosso ver, o problema maior reside não na forma como ocorre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais constitucionais, mas na maneira como se dá a interpretação constitucional, sendo, portanto, necessário o desenvolvimento de critérios claros para que os cidadãos possam sentir-se suficientemente seguros ao terem suas controvérsias analisadas e julgadas sob o prisma jurídico-constitucional dos direitos fundamentais.