Há milhares de servidores públicos no Estado de Mato Grosso do Sul sofrendo com o famigerado “cartão de crédito consignado”.
Trata-se de um produto financeiro com uma lógica perversa, onde é disponibilizado ao servidor um cartão com o qual pode fazer saques ou compras e a fatura é parcialmente debitada em sua folha de pagamento.
Por que perversa? Pelo fato de que se debita na folha de pagamento apenas o valor mínimo da fatura, enquanto que o restante entra no crédito rotativo, podendo transformar-se em uma dívida impagável.
Quem já pagou apenas o valor mínimo da fatura do cartão de crédito e ficou meses no crédito rotativo sabe que a dívida rapidamente torna-se enorme.
Vítimas dessa ganância das instituições de crédito, milhares de servidores públicos estão absurdamente endividados e sem qualquer expectativa de resolver o problema.
Poderia ser dito que esse sistema não é perverso pois foi “contratado” pelo servidor e o “combinado não sai caro”.
Contudo, apesar de não haver uma pesquisa sobre o assunto, é certo que muito mais da metade dos servidores públicos que entraram nessa modalidade de crédito o fizeram acreditando que estavam contratando um cartão que possibilitaria um “crédito consignado em folha” e não um “cartão de crédito consignado”. É uma sútil diferença.
O nome induz em erro o consumidor.
Todos sabemos do perigo que é o típico cartão de crédito se pagarmos apenas o valor mínimo da fatura. Porém, quando se adiciona a expressão “consignado” ao nome “cartão de crédito”, passa-se a impressão de que é um cartão que libera um crédito consignado na folha de pagamento.
Não haveria problemas se, a cada uso do cartão, o crédito utilizado fosse transformado em um crédito consignado e fosse automaticamente parcelado em número de meses determinado.
Porém, o que acontece na prática é que a dívida se torna infinita e crescente, pois se desconta na folha de pagamento apenas o valor mínimo da fatura e o restante fica no crédito rotativo sofrendo a incidência de juros altíssimos, aliás, “juros de cartão de crédito” (o nome já diz tudo).
Então, depois de alguns meses ou anos sofrendo, o servidor que está nesse pesadelo resolve entrar com ação judicial e o que acontece? Infelizmente, neste Estado (MS) as decisões são contrárias ao consumidor. A justificativa, resumidamente, é que “a contratação é válida e deve ser mantida”.
Com todo o respeito, uma grande injustiça!
Poderíamos até aceitar que a contratação foi “válida” se não estivéssemos diante de uma relação de consumo, onde uma das partes é nitidamente mais fraca e, além disso, possivelmente a grande maioria dos servidores não sabia que se tratava de um tradicional cartão de crédito que teria apenas o valor mínimo da fatura consignado em sua folha de pagamento.
Para piorar minha angústia, como membro da Comissão Especial de Defesa do Consumidor, do Conselho Federal da OAB, ao participar de reunião com temas de interesse do consumidor em Brasília, descubro que em vários outros Estados (talvez todos…, pelo menos todos com os quais tive contato) a posição consolidada do Poder Judiciário é bastante diferente.
Nos outros Estados, as decisões judiciais consideram nula a contratação e convertem o contrato numa espécie de crédito consignado em folha, aplicando a taxa de juros média do mercado, conforme divulgada pelo Banco Central (Bacen).
Por exemplo, se o servidor usou dez mil reais no mês de junho de 2018, transformam o “cartão de crédito consignado” em um “empréstimo consignado”. A partir daí, utilizam os valores já pagos na modalidade “cartão de crédito” para abater parte da dívida (ou até quitar) e o saldo devedor é parcelado em um número fixo de meses, conforme a taxa de juros média do mercado. Simples e justo.
Em outros Estados, existem Ações Civis Públicas ajuizadas pelos respectivos Ministérios Públicos e Defensorias Públicas que foram julgadas procedentes, isto é, em favor dos consumidores. No Maranhão, por exemplo, em 2017 a Defensoria Pública recebeu o Prêmio Innovare por ter combatido, com êxito, a prática do “cartão de crédito consignado”.
Então, diante desse cenário de injustiça com milhares de consumidores no Estado de Mato Grosso do Sul, o caminho natural seria levar o assunto para o Superior Tribunal de Justiça (“levar para Brasília”, como dizem os leigos).
Acontece que em Brasília (STJ) as decisões são no sentido de que “não podem entrar no mérito da discussão” por se tratar de análise de contrato e não de ofensa direta ao texto da lei. Como se o Código de Defesa do Consumidor não fosse lei. Assim, fica valendo o que foi decidido no âmbito estadual.
Óbvio que a luta deve continuar. A esperança é que o equilíbrio e a justiça prevaleçam, mas até isso acontecer, milhares de pessoas padecem necessidades até mesmo alimentares, enquanto que as instituições financeiras engordam muito seus lucros com a odiosa e sorrateira prática do “cartão de crédito consignado”.
É preciso que algum representante eleito pelo povo, com genuíno interesse na defesa dos consumidores, faça “barulho” político, com audiências públicas, mídia etc., a fim de mudar essa situação na fonte, ou seja, proibir que essa modalidade de contrato continue sendo praticada com os servidores públicos, o que já seria um grande ganho.
Melhor ainda seria se esse representante do povo, após todo seu trabalho político, conseguisse que todos os contratos atuais fossem transformados em crédito consignado em folha, nos moldes daquilo que em outros Estados já ocorreu por meio do Poder Judiciário.
Óbvio que que se alguém assumir essa bandeira, encontrará oposição do Poder Executivo, pois ele é o primeiro a facilitar o acesso dos representantes dessas instituições financeiras aos cadastros dos servidores. Além disso, as instituições que praticam modalidade de “cartão de crédito consignado” reagirão com toda sua força econômica e jurídica, dizendo que tudo está de acordo com a lei e ainda argumentando que, pelo menos aqui no Estado, as decisões judiciais avalizam suas práticas.
Será um pequeno Davi contra três enormes Golias.
Lembremos nosso chamado: “Abre tua boca em favor dos que não podem se defender; sê o protetor dos direitos dos desamparados” (Provérbios 31:8).
HENRIQUE LIMA. Advogado (www.henriquelima.com.br). Mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e pós-graduado em Direito Constitucional, Civil, do Consumidor, do Trabalho e de Família. Autor de livros e artigos, jurídicos e sobre temas diversos. Membro da Comissão Nacional de Direito do Consumidor do Conselho Federal da OAB (2019/2021). Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5217644664058408