A Repercussão Geral como Mecanismo de Fortalecimento do Estado Democrático de Direito

RESUMO: Tratam-se de considerações acerca da importância que a Repercussão Geral, como requisito de admissibilidade do Recurso Extraordinário, tem na preservação da importância institucional do Supremo Tribunal Federal e, conseqüentemente, no fortalecimento do Estado Democrático de Direito, por meio da adequada proteção dos direitos e garantias insculpidos na Constituição Federal. (escrito em 2010)

TEXTO: Como responsável pela guarda da Constituição Federal e como legítimo titular da jurisdição constitucional o Supremo Tribunal Federal possui um papel de imensa relevância na consolidação do estado democrático de direito na sociedade brasileira. Sua tarefa de dizer a última palavra acerca das normas constitucionais lhe exige um imenso esforço a fim de garantir que suas decisões e suas interpretações sejam legitimadas pela sociedade a partir do reconhecimento de que são frutos de ponderações balizadas pela justiça e pela razoabilidade.

Mas, para que o Supremo Tribunal Federal possa bem desempenhar um mister com tamanha envergadura, é indispensável que, entre outras condições, possua uma carga de trabalho compatível com a profunda justiça que é esperada de suas decisões, tomadas, muitas vezes, a partir de normas de conteúdo notoriamente aberto, as quais, para serem adequadamente concretizadas, exigem uma detida reflexão acerca das reais necessidades que a sociedade apresenta para atingir seu objetivo de garantir o desenvolvimento e a dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, um dos maiores problemas enfrentados pela Corte Constitucional brasileira é o excessivo número de processos que lhe são enviados para julgamento. É o que se chama de “crise do Supremo Tribunal Federal”. Apenas para se ter uma idéia, no ano de 2006, foram-lhe enviados 127.535 processos, o que equivale a 11.594 processos para cada um dos onze ministros[1].

Uma das explicações para essa imensidão de processos é a massificação das demandas repetitivas, normalmente contra atos da Administração. Outra justificativa para tantos processos que chegam ao Supremo é a falta de um filtro, melhor dizendo, de um mecanismo a impedir que processos que não possuam uma determinada relevância cheguem à apreciação da mais importante Corte do país.

Nesse sentido, a Emenda Constitucional n. 45/2004, que programou a conhecida “Reforma do Judiciário”, com a evidente intenção de limitar o número de processos enviados para a apreciação do Supremo Tribunal Federal, instituiu a Repercussão Geral como um dos requisitos de admissibilidade para o conhecimento do recurso extraordinário. E foi pela Lei 11.418 de 19.12.2006 que o legislador ordinário disciplinou as regras processuais desse novo instituto.

Essa lei foi muito bem vinda, pois, ao mesmo tempo, resolveu, em parte, esses dois problemas, ou seja, o das causas repetitivas e o das causas irrelevantes. Mas, neste estudo, detemo-nos a analisar a questão da relevância.

A exigência de que a questão tratada no recurso extraordinário, para que o processo seja conhecido pela Suprema Corte, possua uma determinada relevância não é inédita e nem exclusiva do Brasil. Apesar de que, obviamente, com outros contornos, a Constituição Brasileira de 1969, por meio da EC 7/1977, previa a figura da “argüição de relevância”.  De igual modo, o Código de Processo Civil do Japão e o Código de Processo Civil nacional argentino prevêem a necessidade de haver uma questão de direito relevante[2].

Apesar de não ser inédita e nem exclusiva, o requisito da Repercussão Geral regulamentado pela Lei 11.418/06 representa uma grande mudança no procedimento de controle incidental de constitucionalidade do direito brasileiro. Representa, também, uma maximização da “…feição objetiva do recurso extraordinário.”[3], aproximando-o, nesse aspecto, do controle abstrato de constitucionalidade, cujos processos são essencialmente objetivos, isto é, “… sem partes, no qual inexiste litígio referente a situações concretas individuais.”[4] Isso porque, a controvérsia deixa de ser analisada sob a ótica dos litigantes originários, dado o reconhecimento da existência da Repercussão Geral na discussão travada.

Assim, uma das conseqüências importantes do instituto da Repercussão Geral é, também, a de aproximar ainda mais os efeitos das decisões proferidas em controle concreto de constitucionalidade com os das decisões oriundas do controle abstrato, numa continuação da tendência que já se verificava quando o Supremo, em reiteradas decisões[5], entendeu pela desnecessidade de se encaminhar o tema constitucional ao Plenário do Tribunal, desde que já se tenha manifestado acerca da inconstitucionalidade da lei questionada[6].

O parágrafo primeiro do artigo 543-A do CPC diz que haverá repercussão geral quando houver questões relevantes do ponto de vista econômicopolíticosocial ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa, atingindo “toda a coletividade ou um grande número de pessoas”[7]. Já o parágrafo segundo do mesmo artigo prevê a hipótese de uma repercussão presumida no caso de o recurso impugnar decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.

A natureza jurídico-processual da Repercussão Geral é a de mais um pressuposto de admissibilidade do Recurso Extraordinário, conforme ensina o professor Sérgio Bermudes[8], ao dizer que “o §3º do art. 102 criou mais um pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário: a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, cabendo à lei estruturar o modo de demonstração desse requisito”.

Deve-se ter claro que os demais requisitos de admissibilidade continuam sendo exigidos, tal como a necessidade de que a discussão tenha, também, índole constitucional. Entretanto, a análise da ocorrência, ou não, da Repercussão Geral compete ao Supremo Tribunal Federal, conforme ensinam Teresa Arruda Alvim Wambier, José Miguel Garcia Medina e Luiz Rodrigues Wambier ao dizerem: “A Constituição nada diz a respeito de o órgão ‘a quo’poder negar a subida ao recurso extraordinário por este fundamento, mas, ao que parece, isso não poderá ocorrer, já que nem o relator no próprio STF poderá fazê-lo.”[9].

O Supremo Tribunal já reconheceu a Repercussão Geral em vários temas relacionados ao direito tributário (discussões acerca do PIS; IPI e ICMS), ao direito civil (prisão depositário infiel), ao direito administrativo (omissão do Poder Executivo acerca dos vencimentos dos servidores públicos estaduais) e ao direito do consumidor (tarifa básica de assinatura mensal; cobrança de pulsos além da franquia telefônica; e fornecimento de medicamentos de alto custo pelo Estado)[10], numa clara demonstração de que não utilizará uma interpretação injustificadamente restritiva para o reconhecimento da Repercussão Geral.

Mesmo porque, apesar de o legislador ter utilizado conceitos abrangentes ao dizer que há necessidade de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, ao contrário do que pode parecer, não foi dado ao Supremo Tribunal Federal um poder discricionário, eis que, além de as decisões deverem ser fundamentadas – por imposição da própria Constituição Federal – não há a opção de julgar, ou não, o recurso, segundo sua vontade e conveniência. É o que explica Humberto Theodoro Júnior[11].

Enfim, pelo que se verifica dos contornos teóricos e práticos que envolvem esse novo pressuposto de admissibilidade do Recurso Extraordinário, certamente que será um instrumento eficaz para se atingir o objetivo de valorização dos trabalhos e dos julgados provenientes do mais importante Tribunal deste país, o qual poderá continuar a desempenhar seu preponderante papel na afirmação, concretização e proteção dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, consolidando, assim, o fortalecimento do Estado Democrático de Direito na sociedade brasileira.


[1] Fonte: Relatórios Anuais e Secretaria de Informática do Supremo Tribunal Federal.

[2] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário e Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal. In Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil. N. 48. Jul-Ago/2007.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira; Mártires Coelho, Inocêncio e Gonet Branco, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional – São Paulo: Saraiva, 2007. Pag. 1025.

[4] Rcl 397-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 21.05.93.

[5] RE 190.728; AI-AgRg 168.149; AI-AgRg 167.444 e RE 191.898.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira; Mártires Coelho, Inocêncio e Gonet Branco, Paulo Gustavo. Op. Cit. pag. 1031.

[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Ob. Cit., pag. 109.

[8] BERMUDES, Sérgio. A Reforma do Judiciário pela Emenda Constitucional nº 45. Editora Forense. Rio de Janeiro, 2005. Pag. 56.

[9] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim e outros. Reforma do Judiciário: Primeiras Reflexões sobre a Emenda Constitucional N. 45/2004. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005.

[10] Fonte: site do Supremo Tribunal Federal.

[11] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Ob. Cit., pag. 105.

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Sobre o autor

Henrique Lima

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Henrique Lima

Henrique Lima é advogado atuante em defesas pessoas jurídicas e físicas em temas envolvendo direito tributário, administrativo, previdenciário (INSS e RPPS), do trabalho, do consumidor e de família.

É mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e pós-graduado (lato sensu) em direito constitucional, direito do trabalho, civil, consumidor e família. É sócio do escritório Lima & Pegolo Advogados Associados (www.limaepegolo.com.br) que possui unidades em Curitiba-PR, Campo Grande-MS e São Paulo-SP, mas atende clientes em vários Estados brasileiros.

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