Direito do Trabalho: Empregados “Externos” também podem ter direito a horas extras

Existe uma ideia incutida na mente de muitos trabalhadores de que aqueles que realizam atividades externas não possuem direito a serem remunerados pelas horas extras eventualmente trabalhadas. Essa preconcepção é oriunda de uma época em que havia quase nada do aparato tecnológico de que hoje dispomos, então quando se falava em “externo” já era praticamente certa a impossibilidade de a jornada ser controlada. Porém, conforme veremos neste texto, a verdade atual é bem diferente dessa falsa crença que ainda persiste. O dispositivo legal que trata do assunto é o inciso I do artigo 62 da CLT que assim estabelece:

Art. 62. Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo:

I – os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados;

Perceba que o legislador coloca uma condição absoluta para que o empregado que exerce atividade externa seja excluído do direito à limitação da jornada: a incompatibilidade de controle/fiscalização do horário de trabalho. Isso significa que, mesmo que o empregado desempenhe atividade externa, se for possível determinar um horário de trabalho, então o mesmo passará a ter direito a uma jornada definida e, consequentemente, à remuneração pelas horas extras quando tiver laborado além do horário.

Devemos entender que quando a lei diz “… atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho…” ela exclui a mera falta de vontade do empregador, porque não se trata de o mesmo querer ou não controlar o horário de trabalho, mas de efetivamente ser possível ou não o controle. É relevante deixar isso bem claro, porque a prática cotidiana mostra que, em razão das avançadas tecnologias à disposição do mundo empresarial, muitos empregadores possuem plenas condições de fiscalizar os horários de labor de seus funcionários, porém preferem se esconder atrás da alegação de que “é trabalhador externo…” e com isso exigem excessivas jornadas de trabalho de seus colaboradores, sem, contudo, remunerá-los na mesma intensidade. Sobre essa “falta de vontade” de alguns empregadores, Homero Batista Mateus da Silva, doutor em direito pela USP, assim assevera: “Mero desinteresse do empregador em investigar a jornada de trabalho do empregado não serve para configurar a incompatibilidade.” (Curso de Direito do Trabalho Aplicado, volume 2, 2ª edição, RT, 2015)

A doutora Vólia Bonfim Cassar, em sua obra “Direito do Trabalho” (9ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: 2014. MÉTODO. pag. 671) faz uma distinção entre os tipos de trabalhadores externos e aponta a existência de três categorias:

1º – Trabalhadores externos cujo controle de horário e de execução das tarefas é impossível ou de difícil mensuração;

2º – Trabalhadores externos, mas que são obrigados a passar na empresa durante o expediente, podendo existir ou não fiscalização;

3º – Trabalhadores externos cuja atividade desenvolvida é compatível com a fixação de horário. 

O problema é que muitos empregadores gostam de acreditar que seus funcionários estão na primeira das hipóteses acima indicadas, isto é, de ser impossível o controle da jornada, quando na verdade deveriam estar na terceira, ou seja, de ser compatível a fixação de horário. A própria Dra. Vólia indica que para estar na primeira categoria é necessária a inexistência de qualquer tipo de controle não apenas da jornada, mas inclusive dos trabalhos realizados:

Mesmo externos, se existir alguma forma de controle de produção, de percurso, de tarefas, de horário, de visitações etc., o empregado terá direito ao Capítulo em estudo e, se comprovadas horas extras e/ou noturnas, haverá remuneração destas, pois a lei limitou a tutela protetiva em face de uma presunção jurídica (presume-se que o trabalhador externo não é controlado e fiscalizado), que pode ser afastada por prova em contrário. (ob. cit. pag. 672)

A doutora e livre-docente Marly A. Cardone manifesta de maneira muito clara sua opinião em sentido semelhante e deve servir de alerta para aqueles que querem fazer mau uso dessa exceção prevista na lei:

Insistimos: com os modernos meios de comunicação todas as atividades são suscetíveis à fixação de horário, até a do vendedor viajante. Simplesmente, em muitos casos, não é conveniente, pela onerosidade que acarreta, a fixação de horário e seu controle. (Viajantes e Pracistas no Direito do Trabalho. 4ª Edição Revista e Atualizada, LTr, 1998, SP. Pag. 149) (grifamos)

O Tribunal Superior do Trabalho confirmou um acórdão que condenava determinado banco ao pagamento de horas extras asseverando a necessidade da “incompatibilidade” à qual estamos nos referindo, ou seja, não basta o trabalhar exercer atividades em ambiente externo ao da empresa.

“(…) Cumpre referir que o fato de o empregado prestar serviços de forma externa, por si só, não enseja o seu enquadramento na exceção contida no referido dispositivo consolidado. Relevante para o deslinde da controvérsia, neste caso, é que exista incompatibilidade entre a natureza da atividade exercida pelo empregado e a fixação do seu horário de trabalho. (…)” (TST; RR 0055600-43.2009.5.04.0005)

Vamos, portanto, analisar doravante o que os tribunais costumam entender por “… incompatibilidade entre a natureza da atividade exercida pelo empregado e a fixação do seu horário de trabalho”. Saliento, porém, que não é objeto deste estudo a atividade dos motoristas, mas dos demais trabalhadores eventualmente enquadrados como externos por seus empregadores.

CASO 01 – Comparecimento obrigatório na empresa no início e no final do dia

(…) Quanto ao período a partir de março/2011, em relação ao qual as reclamadas alegam trabalho externo, o que afastaria o direito a horas extras, por não haver controle de jornada, não há acolher a tese.

O invocado artigo 62, I, da CLT afasta a incidência das normas reguladoras da duração do trabalho dos empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, não sendo essa, todavia, a situação da reclamante, tendo ficado claro, aliás, que havia efetivo controle da sua jornada.

A testemunha Pedro, que trabalhou nas mesmas condições, esclareceu que em 80% do tempo o trabalho era interno, sendo externo apenas no restante, havia obrigatoriedade de estar na empresa no início e no término da jornada, não sendo permitido encerrar uma visita e ir direto para casa, mesmo sendo no final do dia, e, quando estava no labor externo, seu tempo era controlado constantemente por telefone (itens 4, 6 e 8, ID 709933f, p. 4). (…)

(Processo n. 0024051-18.2013.5.24.0005 – RO – TRT 24) (alterei o nome da testemunha para preservação)

Essa é uma situação muito comum e em que é facilmente afastada a alegação de estar o trabalhador incluído na exceção do artigo 62, I, da CLT, pois o comparecimento à empresa no início e no final da jornada torna plenamente possível ao empregador o controle da jornada. Devo alertar, entretanto, para a cautela de argumentar também a existência de outros mecanismos pelos quais seria possível o controle da jornada, pois há decisões conflitantes no quando se trata de comparecimento ao local de trabalho no início e ao final da jornada:

HORAS EXTRAS. TRABALHO EXTERNO. VENDEDORA AUSÊNCIA DE CONTROLE DE JORNADA. O mero comparecimento no início e ao final da jornada à sede da empresa não traduz, por si só, a existência de controle do horário trabalhado pela reclamante porquanto não há sequer alegação da existência de outros meios de controle indireto ou da eventual existência de metas ou rotas preestabelecidas a serem cumpridas, o que atrai a incidência do artigo 62, I, da CLT. Recurso da autora desprovido. (TRT 24ª R.; RO 0000099-19.2013.5.24.0002)

VENDEDOR EXTERNO. CONTROLE DE JORNADA. POSSIBILIDADE. HORAS EXTRAS. CABIMENTO. Tem-se por reconhecido o controle de jornada do empregado vendedor externo que é obrigado a comparecer diariamente na empresa no início e no final do expediente, exsurgindo daí o direito às horas extraordinárias. Recurso ordinário não provido, por unanimidade. (TRT 24ª R.; RO 0026300-21.2008.5.24.0003)

CASO 02 – Diversas ferramentas que possibilitavam a fiscalização por parte da empregadora

(…) 1. Horas extraordinárias. Jornada externa. Reexame de fatos e provas. Súmula nº 126. Não provimento. A egrégia corte regional, soberana no exame dos fatos e provas dos autos, reconheceu que não foi cumprido o requisito relativo à anotação, na CTPS da reclamante, de serviço externo não sujeito a controle de horário, nos termos do artigo 62, I, da CLT e a prova testemunhal apresentada pela própria reclamada demonstrou que havia possibilidade de fiscalização da jornada da autora, mediante apresentação de relatórios com itinerários, horários e nomes dos médicos, roteiros das atividades do mês, aprovado pelo supervisor e pelo gerente-regional; alteração de roteiro somente após comunicação previa ao supervisor; meta de visitas e frequentes contatos telefônicos com o supervisor; acompanhamento do supervisor nas visitas, uma vez por semana; e lançamento dos dados das visitas realizadas no sistema denominado cedat, onde era possível determinar o horário que cada médico foi atendido, sendo devido o pagamento das horas extraordinárias excedentes da 8ª diária. (…) (Tribunal Superior do Trabalho TST; AIRR 0001233-11.2010.5.04.0013)

A empregadora, nesse caso, tinha a seu dispor diversos mecanismos que isolados ou conjuntamente possibilitavam o controle da jornada, porém preferiu correr o risco e acomodar-se na argüição de que se trata de “externo” e por isso não teria direito às horas extras.

CASO 03 – Possibilidade de controle da jornada por meio do sistema utilizado para acompanhamento das atividades realizadas

(…) Das horas extras. Para excluir a limitação da duração do trabalho, não basta argumentar somente com o labor externo, mas sim, serviço externo incompatível com a fixação de horário de trabalho (CLT, artigo 62, I), o que certamente não é o caso dos autos. Isso porque, conforme exposto em linhas transatas, havia o sistema CRM, por meio do qual a reclamada realizava o controle de todas as atividades do autor, registrando as contas, visitas a clientes e os horários em que eram realizadas, bem como todas as informações relativas aos clientes, a denotar a existência de controle da jornada de trabalho mesmo que o empregado visitasse clientes externamente. Ademais, a testemunha ouvida a convite do autor declarou que ” (…) o reclamante realizava vendas interna e externamente; que o reclamante comparecia na reclamada em média de 2 a 3 vezes por semana (…)”, o que permite concluir que havia, de fato, o controle da jornada do reclamante, ainda que de forma precária. (…) (TRT 02ª R.; RO 0000763-70.2014.5.02.0085)

A empresa mantinha um sistema por meio do qual acompanhava a produtividade do empregado, mas que, a priori, não teria a função de controle da jornada de trabalho. Em outras palavras, a empregadora investiu recursos financeiros e tecnológicos apenas naquilo que lhe era conveniente e que possibilitaria incrementar seus lucros, mas para fixar limites à quantidade de horas trabalhadas, com vistas à preservação da saúde do funcionário, para isso a empregadora não demonstrou qualquer interesse, quando na verdade bastaria utilizar o mesmo sistema de que já dispunha.

CASO 04 – Veículo com rastreador (GPS), celular corporativo, tablet e roteiro de visitas

(…) Havendo a possibilidade de controle da jornada do reclamante, pelo uso de veículo rastreado por GPS e de celular corporativo, pela entrega de roteiro de visitas ao gerente, além do comparecimento frequente na sede da reclamada, fica afastada a hipótese de exceção. (TRT 04ª R.; RO 0000463-62.2013.5.04.0611)

(…). PROMOTORA DE VENDAS. ATIVIDADE EXTERNA COMPATÍVEL COM FIXAÇÃO E CONTROLE DE HORÁRIOS. PALM TOP. REGISTRO DE HORÁRIO DE VISITAS. Os elementos de prova evidenciam que a atividade laboral da autora, enquanto promotora de vendas, não eram incompatíveis com a fixação e controle de horário de trabalho, na medida em que a empresa tinha total conhecimento do roteiro praticado, da quantidade de visitas e dos horários em que estas eram realizadas, informações que eram registradas no software instalado no Palm Top utilizado pela trabalhadora no desempenho de sua função. Inviável, neste contexto, o enquadramento na hipótese exceptiva prevista no art. 62, I, da CLT. Precedentes deste Tribunal em casos análogos, envolvendo a mesma demandada, que revelam a contumácia e a lesividade massiva da conduta patronal. (TRT04 0000516-67.2013.5.04.0021 RO)

O Tribunal Gaúcho aliou a existência de roteiro de visitas e o comparecimento freqüente à sede da empresa ao fato de a empregadora ter fornecido meios tecnológicos que possibilitam a fiscalização como razões suficientes para afastar o trabalhador da exceção do inciso I do artigo 62 da CLT.

O doutor Homero Batista Mateus da Silva, em sua obra “Curso de Direito do Trabalho Aplicado” (volume 2, 2ª edição, RT, 2015) enumera situações que podem ser usadas para caracterizar o controle da jornada e que são muito esclarecedoras e úteis, pois em sintonia com boa parte das manifestações judiciais:

Servem como indícios de controle de jornada as seguintes situações:

a) jornada que comecem e ou terminem nas dependências da empresa, para retirada e devolução de veículos, ferramentas de trabalho, material de divulgação ou prestação de contas, ainda que o tempo gasto na rua não tenha sido controlado diretamente;

b) fixação de roteiro de visitas ou de outros compromissos;

c) quantidade mínima de visitas ou procedimentos a ser efetuada em determinado dia, somente se autorizando a postergação de alguma delas para o dia seguinte em caso de força maior;

d) entrega de ordens de serviço para o empregado ou sua equipe cumprir necessariamente naquele dia;

e) fixação de metas ou cotas com base em contatos efetuados;

f) controle de quilometragem rodada em veículo do próprio empregado ou fornecido pelo empregador;

g) uso intensivo de meios de comunicação, cada vez mais generalizados, desde simples aparelhos de telefone celular até mecanismos mais sofisticados de contato remoto, graças à microinformática.

Saliento que várias outras circunstâncias podem servir de elementos para configurar a possibilidade do controle da jornada. Mas, importa frisar que quanto mais desses indícios estiverem presentes no caso real em análise, maiores as chances de êxito em favor do trabalhador.

CONCLUSÃO

Enfim, espero que para o leitor tenha fica claro aquilo que procurei comunicar neste artigo: que a exceção prevista na lei, que retira de alguns trabalhadores externos o direito ao recebimento de horas extras, é utilizada de maneira abusiva por alguns empregadores que possuem toda condição de controlar a jornada de trabalho de seus funcionários, mas por “mero desinteresse” (Homero, op cit) preferem não fazê-lo, tornando, assim, importante que o trabalhador acautele-se com provas que serão necessárias num eventual processo judicial. E-mails, “prints” ou fotos das telas dos sistemas, cópias de relatórios, itinerários e mensagens enviadas ao celular e testemunhas são algumas das formas de comprovar a realidade dos fatos.


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Sobre o autor

Henrique Lima

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Henrique Lima

Henrique Lima é advogado atuante em defesas pessoas jurídicas e físicas em temas envolvendo direito tributário, administrativo, previdenciário (INSS e RPPS), do trabalho, do consumidor e de família.

É mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e pós-graduado (lato sensu) em direito constitucional, direito do trabalho, civil, consumidor e família. É sócio do escritório Lima & Pegolo Advogados Associados (www.limaepegolo.com.br) que possui unidades em Curitiba-PR, Campo Grande-MS e São Paulo-SP, mas atende clientes em vários Estados brasileiros.

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