A Responsabilidade do Estado e o Nexo de Causalidade

RESUMO:  Trata-se de artigo que analisa a Responsabilidade do Estado, discorrendo acerca de sua evolução histórica e situando-a no atual estágio evolutivo do direito constitucional brasileiro, bem como enfatizando a importância de se verificar com seriedade a real existência do nexo de causalidade entre a ação ou omissão culposa do Estado e o dano sofrido pelo terceiro, sob pena de se subverter a idéia de Justiça que orienta a Teoria da Responsabilidade Civil e causar indevido ônus a toda a sociedade por meio de infundadas condenações do Estado. (escrito em 2009)

TEXTO:
A Responsabilidade do Estado[i] não se resume à simples noção de que esse sempre responderá pelos danos, diretos ou indiretos, relacionados à atuação da Administração Pública, independentemente de culpa, como pode sugerir uma leitura apressada da norma contida no parágrafo 6º[ii] do artigo 37 da Constituição Federal de 1988.

Por isso tornam-se relevantes algumas ponderações acerca dos desdobramentos e elementos contidos no conceito da responsabilidade do Estado, a fim de facilitar a correta aplicação desse conceito e de evitar aquilo que o Ministro Gilmar Mendes chama de “apropriações indevidas de recursos da sociedade brasileira”[iii] por meio de uma ilegítima utilização dos instrumentos normativos destinados à proteção da cidadania.

Segundo ensinamento de Clóvis Beviláqua, o fundamento da responsabilidade Estado é o princípio de justiça segundo qual toda lesão de direito ou dano devem ser reparados, de modo que “o Estado, tendo por função principal realizar o direito, não pode chamar a si o privilégio de contrariar, no seu interesse, esse princípio de justiça.”[iv].

Três foram os períodos de desenvolvimento da responsabilidade do Estado.

O Período da Irresponsabilidade do Estado [1] teve seu apogeu nos países absolutistas em que a figura do soberano era sagrada e intocável, não sujeito a qualquer tipo de responsabilização.

O Período Civilista [2], conhecido também como intermediário ou misto, temperava a idéia de responsabilidade com a de irresponsabilidade, por meio de uma distinção entre atos de gestão e atos de império, incutindo àqueles a noção de culpa civil.

O Período Publicista [3], afastou a responsabilidade do Estado das regras do direito comum, entre elas a teoria do ilícito civil, mais ligada à culpa, e trouxe o conceito de risco, donde surgiu a Teoria do Risco, ou Teoria Objetiva, fundada na idéia de que os danos causados ao particular pela atuação do Estado devem ser socializados porque ocorreram enquanto se perseguia o benefício de todos, ou seja, na medida em que a atuação Estatal traz benesses para toda a sociedade, conseqüentemente, deve haver uma distribuição igualitária dos ônus e encargos[v]sofridos na busca dos benefícios sociais.

Foi a partir da construção da idéia de Estado Democrático de Direito, o qual submeteu o Estado à lei constitucional e reconheceu a existência de determinados direitos fundamentais, como garantia de defesa contra os abusos do Poder Estatal, que despontou a tendência de se prever a responsabilidade objetiva do Estado pelos danos causados aos particulares[vi].

O direito brasileiro não passou pelo Período da Irresponsabilidade do Estado[vii], porque, em que pese a Constituição do Império de 1824 e a Constituição Federal de 1891 não preverem a hipótese de responsabilidade do próprio Imperador ou do Estado, havia, de qualquer forma, a responsabilidade dos funcionários por seus atos culposos[viii], ou seja, já se tratava do Período da Civilista.

Desde a Constituição Federal de 1946 que no Brasil se adota a Teoria do Risco Administrativo, também chamada de Teoria do Risco Criado ou, ainda, de Teoria da Responsabilidade Objetiva[ix], atualmente fundada no parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição Federal de 1988. Assim, o ponto nevrálgico da Responsabilidade do Estado deixou de ser a culpa do funcionário e passou a ser a verificação do nexo de causalidade entre a ação ou omissão e o dano ou lesão sofrida pelo terceiro.

O termo “nexo” significa vínculo, ligação, união; enquanto “causalidade” é a relação de causa e efeito. Entendendo-se, então, por Nexo de Causalidade “o vínculo, o elo entre a atividade estatal e o dano produzido ao terceiro”[x].

A necessidade de existência desse elo entre o dano reclamado e a atividade ou omissão do Estado é assim referida por Yussef Said Cahali: “…a responsabilidade da Administração Pública, desvinculada de qualquer fator subjetivo, pode, por isso, ser afirmada independentemente de demonstração de culpa – mas está sempre submetida, como é óbvio, à demonstração de que, foi o serviço público que causou o dano sofrido pelo autor”.[xi]

Sendo justamente nisso que reside o problema da Responsabilidade do Estado, pois, conforme alertado pelo Ministro Gilmar Mendes[xii], devido a amplitude do conceito de Responsabilidade Objetiva e a superficialidade ou benevolência na verificação do Nexo de Causalidade, algumas decisões têm transformado o Estado num “pródigo e autofágicosegurador universal”[xiii], com reflexos negativos para toda a sociedade.

Reconhecendo-se que o Estado nada mais é que a união dos esforços e das contribuições de toda a sociedade, não é justo que fique sem a devida reparação o indivíduo que sofra um prejuízo decorrente de uma ação estatal, ainda que sem culpa da Administração, por ser presumido que, por agir o Estado em função do bem comum, aquele ato trouxe benefício social, cujos ônus devem ser socializados. Essa é a essência da Teoria do Risco Administrativo.

Por outro lado, deve-se ter cuidado especial tanto com a análise da real existência do liame entre o dano sofrido pelo terceiro e a ação ou a omissão culposa, essa derivada da inadimplência do dever de agir[xiv], como com a existência de possíveis excludentes de responsabilidade, porque, do contrário, estar-se-á subvertendo a intenção do legislador constituinte, tornando a inspiradora idéia de Justiça Social numa fonte de locupletamento ilícito.

A Teoria do Risco Administrativo, ao contrário da Teoria do Risco Integral, admite a prova das excludentes de responsabilidade, ou seja, culpa da vítima – ou de terceiro – força maior ou caso fortuito, por terem o condão de desfazer, romper, o liame causal imprescindível à responsabilização do Estado.

Quanto ao nexo de causalidade, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 130.764 assentou que a teoria adotada é a do dano direto e imediato, também denominada Teoria da Interrupção do Nexo Causal, que “só admite o nexo de causalidade quando o dano é efeito necessário de uma causa, o que abarca o dano direto e imediato sempre, e, por vezes, o dano indireto e remoto, quando, para a produção deste, não haja concausa sucessiva”, conforme explica o professo Agostinho Alvim[xv], citado no referido acórdão.

Em ambas as hipóteses – inexistência de nexo de causalidade ou a existência de excludente de responsabilidade – o ônus da prova caberá ao Poder Público.

Percebe-se que a Responsabilidade Estatal no estágio doutrinário e jurisprudencial que se encontra não carece de revisões, pois em perfeita consonância com o sentimento comum de Justiça Social, consubstanciado na idéia da socialização dos prejuízos decorrentes da atividade ou inatividade culposa do Estado, dado que presumidamente ocorreu em busca do bem comum.

O que precisa ser aperfeiçoada é sua aplicação, especialmente no que diz respeito à averiguação da ocorrência do nexo de causalidade, evitando-se que se confundam as “meras correlações com a causalidade”[xvi], e da inexistência de quaisquer excludentes de responsabilidade.

Diante dessas breves considerações, pode-se perceber que o estudo da Responsabilidade do Estado é um assunto complexo e que exige detida reflexão, pois o descuido numa situação concreta poderá impor um injusto ônus ao prejudicado ou a sociedade, caso o pedido indenizatório seja julgado improcedente ou procedente, respectivamente, subvertendo-se com isso a intenção inicial de Justiça Social.


[i] A respeito da opção de usar a denominação “Responsabilidade do Estado” ao invés de “Responsabilidade Civil do Estado” vide GIOLO JR., Cildo, Assunto Especial. Responsabilidade Civil do Estado. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil n. 31. Setembro/Outubro, 2004. Porto Alegre: Síntese. Afirma o autor que o adjetivo civil é redundante porque as pessoas jurídicas de direito público só podem ser punidas patrimonialmente, ou seja, penas de caráter civil.
[ii] CF/88, art. 37, § 6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
[iii] MENDES, Gilmar Ferreira; Mártires Coelho, Inocêncio e Gonet Branco, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional – São Paulo: Saraiva, 2007.
[iv] Código Civil do Estados Unidos do Brasil. Edição histórica. 7. tir. Rio de Janeiro: Editora Rio, v.1, [s.d.], p. 214-215.
[v] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 527. A autora diz: “…princípio da igualdade de ônus e encargos sociais.”.
[vi] Cf. CARVALHO DIAS, Ronaldo Bretãs de., Assunto Especial. Responsabilidade Civil do Estado. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil n. 29. maio/junho., 2004. Porto Alegre: Síntese.
[vii] MENDES, Gilmar Ferreira. Ob. Cit., pag. 797.
[viii] Kiyoshi Harada sustenta que esse período deve ser encarado como de irresponsabilidade do Estado. Vide seu texto: HARADA, Kiyoshi. Responsabilidade Civil do Estado. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 41, maio de 2000. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=491. Acesso em: 03 dez. 2007.
[ix] “A responsabilidade objetiva, insculpida no art. 194 e seu parágrafo, da CF de 1946, cujo texto foi repetido pelas Constituições Federais de 1967 e 1969, arts. 105-107, respectivamente, não importa no reconhecimento do risco integral, mas temperado. Invocada pela ré a culpa da vítima e provado que contribuiu para o dano, autoriza seja mitigado o valor da reparação.” (Catharina Pugliese versus União. Acórdão lavrado no julgamento do RE 68.107/SP, Rel. Min. THOMPSON FLORES, em 04.05.70. Revista Trimestral de Jurisprudência, Brasília, v. 55, p. 50-54, jan. 1971.
[x] Weiler Siqueira, Bruno Luiz. “O nexo de causalidade na responsabilidade patrimonial do Estado”. Artigo disponível em http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_145/r145-22.pdf. Acessado em 06.12.2007.
[xi] CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil: doutrina e jurisprudência. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 376. (RJTJSP, 68:145).
[xii] MENDES, Gilmar Ferreira. Ob. Cit., pag. 797.
[xiii] FREITAS, Juarez. “Responsabilidade Civil do Estado e o Princípio da Proporcionalidade”, artigo publicado em 19.01.2006. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br/artigos/edicao010/juarez_freitas.htm, acessado em 03.12.2007.
[xiv] “…somente haverá omissão, no sentido juridicamente relevante, se houver um prévio dever legal de agir…” MENDES, Gilmar Ferreira. Ob. Cit., pag. 801.
[xv] Alvim, Agostinho. Da inexecução das obrigações, 5ª ed., n. 226, pag. 370, Editora Saraiva, São Paulo, 1980.
[xvi] FREITAS, Juarez. ob. cit.

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Sobre o autor

Henrique Lima

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Henrique Lima é advogado atuante em defesas pessoas jurídicas e físicas em temas envolvendo direito tributário, administrativo, previdenciário (INSS e RPPS), do trabalho, do consumidor e de família.

É mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e pós-graduado (lato sensu) em direito constitucional, direito do trabalho, civil, consumidor e família. É sócio do escritório Lima & Pegolo Advogados Associados (www.limaepegolo.com.br) que possui unidades em Curitiba-PR, Campo Grande-MS e São Paulo-SP, mas atende clientes em vários Estados brasileiros.

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